De uma varanda no segundo piso, o rei em pessoa podia observar a saída dos navios, que, acompanhando o fluxo do Tejo, ganhavam o Atlântico.
O que era, então, Lisboa? Como estava constituída sua população? Como vivia e sobrevivia sua gente? Estas perguntas definiram os eixos principais do livro Viver em Lisboa: século XVI, de Lélio Luiz de Oliveira, publicado com apoio da FAPESP.
Professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (Fearp-USP), Oliveira enfatizou em seu livro o aspecto econômico, com a inserção de instrutivas tabelas quantitativas, mas também deu espaço à vida cotidiana e à mentalidade desses homens, “tão profundamente inventores quanto rotineiros”, como os definiu o historiador francês Fernand Braudel (1902 – 1985), um dos principais representantes da famosa École des Annales.
“A historiografia portuguesa privilegiou o que pode ser chamado de ‘Portugal porta afora’. Isto é, a grande influência dos portugueses no processo global. Minha preocupação não foi necessariamente inverter essa análise, mas ressaltar que Portugal não apenas impactou outras regiões como também foi impactado”, disse Oliveira à Agência FAPESP.
Expressão desse impacto foi a inflexão da curva do crescimento populacional de Lisboa, que, em números aproximados, passou de 35 mil habitantes, em meados do século XIV, para 120 mil, no final do século XVI. Durante os reinados de Dom Manuel I (1469 – 1521) e de seu filho, Dom João III (1502 – 1557), a cidade cresceu e se modernizou.
Como informou o pesquisador em seu livro, a população, muito diversificada, incluía, entre outros, fidalgos da corte, funcionários reais, bispos, padres, frades, freiras, novos ricos ligados ao comércio ultramarino, funcionários da alfândega, comandantes de armada, comerciantes, corretores, contratadores, tabeliães, meirinhos, amanuenses, físicos (médicos), enfermeiras, dentistas, boticários, professores, músicos, mestres-artesãos, ourives, douradores, tecelões, alfaiates, sapateiros, padeiros, confeiteiros, biscoiteiros, forneiros, carregadores, marinheiros, soldados, bruxos, pedintes, arruaceiros e escravos.
A escravidão na metrópole
Dado o enorme impacto econômico, social, político e cultural que o escravismo colonial viria a ter no Brasil, o peso da escravidão na metrópole costuma ser negligenciado. Mas, entre meados do século XV e o início do século XVI, ingressaram em Portugal de 140 mil a 150 mil escravos africanos. Para avaliar o peso numérico desse contingente, basta levar em conta que, no início da década de 1530, a população total de Portugal era composta por não mais de 1,2 a 1,4 milhão de pessoas.
“Há concordância entre as fontes a respeito dos maus-tratos e das péssimas condições de vida dos escravos negros”, afirmou Oliveira. Exauridos por trabalhos desumanos, vendidos, trocados, emprestados, deixados em herança, os escravos não tinham sequer o direito de que, depois de mortos, seus corpos fossem enterrados nos cemitérios contíguos às igrejas. Até a criação de entidades como a Confraria de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, se muitos escravos já eram enterrados com ritos cristãos, mas não no solo considerado sagrado dos cemitérios, outros eram simplesmente lançados no monturo da Porta de Santa Catarina ou atirados nos arrabaldes, para serem comidos pelos cães.
Além dos negros de origem africana, outra importante minoria étnica era a dos judeus – posteriormente transformados em “cristãos novos” pela conversão forçada. “No final do século XV, viviam em Portugal cerca de 30 mil judeus. A expulsão dos judeus castelhanos pelos reis católicos Fernando e Isabel, em 1492, fez esse número triplicar”, informou o pesquisador.
Com importantes membros da comunidade judaica entre seus homens de confiança, D. Manuel I foi tido como protetor dos judeus. Mas isso não impediu que, em 1496, seguindo o modelo castelhano, determinasse a expulsão dos israelitas – ato revogado, no ano seguinte, em prol da conversão forçada. Converter o judeu à força parece ter sido o recurso encontrado pelo rei para se apresentar aos olhos da Europa como um exemplo de zelo cristão e, ao mesmo tempo, não privar o reino de alguns dos seus melhores quadros. Mas isso não apaziguou o sentimento antijudaico de parte da população.
Em 1506, em um contexto de seca e peste, um levante popular, instigado por frades dominicanos, e que as autoridades não conseguiram impedir, promoveu o “grande massacre”, no qual 4 mil judeus convertidos foram mortos, muitos deles queimados vivos em fogueiras improvisadas no Largo de São Domingos, no Rossio. Após o massacre, e com a instalação da Inquisição em Portugal em 1540, durante o reinado de Dom João III, muitos “cristãos novos” deixaram o país, fugindo para os Países Baixos, a França, a Turquia e o Brasil.
O destino dos muçulmanos
Há uma controvérsia em relação ao destino dos muçulmanos e descendentes. Vale lembrar que, por mais de quatro séculos, entre 714, quando conquistada por Abdelaziz ibn Musa, e 1147, quando reconquistada por Dom Afonso Henriques, Lisboa (Al-Ushbuna) foi uma cidade islâmica. E, no século X, em seu momento de apogeu, chegou a ter cerca de 100 mil habitantes e uma vida cultural exuberante. Após a chamada “reconquista” cristã, a população muçulmana remanescente foi confinada nos bairros da Mouraria e da Alfama ou nos arrabaldes da cidade. Mas o que aconteceu depois?
“Até recentemente, a historiografia, dentro e fora de Portugal, era praticamente unânime em afirmar que, no século XVI, os remanescentes da comunidade muçulmana, de origem árabe ou berbere, já haviam perdido sua identidade religiosa e cultural e sido assimilados, não se diferenciando mais da população geral. E foi essa visão que adotei em meu livro. No entanto, um estudo recente, do historiador François Soyer, da University of Southampton, apresentou os fatos de maneira diferente, sustentando, com dados robustos, que a pequena minoria muçulmana não assimilada foi expulsa de Portugal por D. Manuel I, em 1497. De modo que a questão, para mim, se encontra em aberto, havendo necessidade de mais estudos para se chegar a uma conclusão”, ponderou Oliveira.
O estudo de Soyer, The Persecution of the Jews and Muslims of Portugal (1496-7). King Manuel I and the End of Religious Tolerance, já se encontra traduzido em Portugal, com o título A Perseguição aos Judeus e Muçulmanos de Portugal – D. Manuel I e o Fim da Tolerância Religiosa (1496-1497) (Lisboa, Edições 70, 2013). O texto original pode ser lido em https://pt.scribd.com/doc/206587484/The-Persecution-of-the-Jews-and-Muslims-of-Portugal-the-Medieval-Mediterranean.
Segundo Oliveira, a dinamização causada pelas navegações e conquistas ultramarinas não provocou uma mudança radical no cotidiano econômico, na organização social, na estrutura dos ofícios e nas formas de trabalho. O novo se instalou sobre bases antigas. Mas alguns setores responderam com maior ênfase à inovação. Um deles foi, por motivos óbvios, o da construção naval. “Esta demandava matérias-primas como madeira, breu, sebo, resina, estopa e ferro para pregos e âncoras, além de cordas e panos para as velas das naus. Grande parte desses produtos provinha do próprio reino. Porém, as melhores madeiras eram importadas”, disse.
A prática sistemática da pilhagem na fase inicial da expansão e a necessidade de defesa dos territórios conquistados na etapa posterior também exigiram o aumento crescente da produção de armas de fogo e de pólvora, bem como o treinamento de pessoal para manejá-las.
Uma atividade bastante dinamizada no período foi a fabricação de um biscoito seco, muito durável, que se tornou item importante na alimentação dos marinheiros. “Esse produto já era conhecido em Portugal, no entorno de Lisboa, mas sua produção ascendeu em função das navegações”, relatou o pesquisador.
Pasteleiros e regateiras
No âmbito interno, em função do aumento populacional, havia uma grande preocupação com o abastecimento cotidiano. “Lisboa passou a reunir uma grande quantidade e uma grande diversidade de profissionais dedicados à alimentação. Os ofícios mais vinculados à população masculina incluíam vendedores ambulantes, pasteleiros, confeiteiros, forneiros, lava-peixes, vinhateiros e fabricantes de aguardentes. Os mais vinculados à população feminina incluíam regateiras (que compravam pescados, hortaliças, frutas ou outros víveres para revender), azeiteiras ambulantes, vendedoras de frutas secas (de porta em porta), estripadoras de peixes, marisqueiras e sardinheiras (que assavam sardinhas na beira do rio). A função de aguadeiro, muito necessária em uma cidade na qual nem todas as casas dispunham de poços, era exercida indistintamente por homens e mulheres”, detalhou Oliveira.
Além de prover a alimentação no sentido estrito da palavra, os profissionais da área também deviam atender a uma sofisticação do paladar suscitada pelas novidades trazidas de fora. “Em relação a isso, podemos dizer que houve uma assimilação parcimoniosa: uma permanência muito forte do passado, mas também a inserção de novos produtos. Foi o caso do açúcar, inicialmente utilizado como droga medicinal, e depois incorporado à culinária portuguesa. E de outros produtos provenientes das colônias ou feitorias, como a batata, o milho americano, a abóbora, o amendoim, o tabaco, o chá e o café. A combinação de ingredientes novos e antigos e a influência de culturas distantes enriqueceu o repertório gastronômico. Assim foram incorporados pratos como o arroz-doce, de origem asiática, e o cuscuz, proveniente do norte africano.
Nas classes altas, a inclusão até excessiva de especiarias, como a pimenta, o cravo, a canela, a noz moscada, o gengibre, a cúrcuma e outras, constituía uma demonstração de luxo e um motivo de ostentação. Nesse topo da pirâmide social, ocorreu também a introdução de novos utensílios, como o garfo, utilizado eventualmente na corte de D. Manuel I, e já cotidianamente, em combinação com a faca, na corte de D. João III.
O entorno de Lisboa e outras regiões de Portugal, como Alentejo, Minho, Douro e Trás-os-Montes, já não davam conta de fornecer tudo o que Lisboa comercializava e consumia. Muitas mercadorias passaram a vir de longe: dos Açores, de Castela, da Galícia, da Itália, da França, de Flandres, da Inglaterra, da África, do Brasil, da Índia, do Ceilão e até da China.
A Câmara da cidade estabelecia as concessões para os ofícios e os locais onde podiam ser exercidos. E promovia a coleta de impostos. “A Câmara estava dividida em pelouros, que eram órgãos administrativos com competências, cargos e serviços específicos. Entre outros, havia o pelouro das carnes, das obras, da limpeza pública, da execução das penas. As rendas da Câmara provinham das licenças concedidas. Essa estruturação da Câmara, que remontava ao século XII, continuou em vigência para além do século XVI”, disse Oliveira.
Inovadora em alguns casos, conservadora em outros, a Lisboa do século XVI refletiu, ao mesmo tempo, a pujança do processo global e o conservadorismo geral da sociedade portuguesa.
Ficha do livro
Título: Viver em Lisboa: século XVI
Autor: Lélio Luiz de Oliveira
Editora: Alameda
Ano: 2015
Páginas: 124
Preço: R$ 26
Mais informações: http://www.alamedaeditorial.com.br/viver-em-lisboa/.
Agência FAPESP