Antes que se iniciasse o Ciclo do Ouro em Minas Gerais, o território atualmente ocupado por Guarulhos foi o principal polo de produção aurífera do país.
O levantamento desse patrimônio – que inclui longos túneis escavados na rocha para o fornecimento de água destinada à lavagem do cascalho na lavra do ouro – foi realizado pelo “Projeto de Inventário e Pesquisa Arqueológica de Guarulhos” (Pipag), coordenado pela arqueóloga Cláudia Regina Plens, e apoiado pela FAPESP por meio de um acordo de cooperação com o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado (Condephaat).
Plens é professora colaboradora do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP) e professora adjunta da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), campus de Guarulhos.
“Quando iniciamos nosso estudo, em 2012, algumas ruínas da época da mineração, nos séculos XVI e XVII, já eram conhecidas, mas ainda não haviam sido mapeadas. Com informações prestadas por antigos moradores, fizemos um levantamento exaustivo. Há construções belíssimas escondidas no meio da mata”, disse a pesquisadora à Agência FAPESP.
Segundo Plens a força de trabalho empregada na mineração e nas obras de infraestrutura era constituída por índios escravizados. E, diferentemente da opinião generalizada de que toda a população indígena do território paulista pertencia ao tronco Tupi, a pesquisadora estima que os habitantes originais da área faziam parte do tronco Jê.
“Algumas anotações feitas pelos jesuítas acerca da língua local sugerem isso. Outro indício é que as primeiras tentativas feitas pelos paulistas para se aproximar das regiões auríferas foram malsucedidas. Nossa hipótese é que eles foram rechaçados por indígenas aguerridos e, só depois de derrotá-los, conseguiram impor seu domínio, substituindo os Jês refratários por Tupis escravizados. Mas não há documentos que permitam demonstrar tal hipótese”, disse.
O que se sabe é que o atual bairro de São Miguel Paulista, localizado na zona Leste do município de São Paulo e próximo a Guarulhos, nasceu de um povoamento indígena, cujo território foi reconhecido pelo poder colonial mediante outorga de Carta de Sesmaria, no final do século XVI.
“Esse território indígena, conhecido como Sesmaria de Ururaí, sempre foi considerado como parte apenas do município de São Paulo. Mas, à medida que começamos a mexer com a documentação, descobrimos, pela toponímia e pela geografia descrita, que a Sesmaria de Ururaí incluía também a parte setentrional de Guarulhos, onde se localizava a área de mineração”, disse Plens.
Um importante patrimônio remanescente dessa época é o Tanque Grande, um complexo de estruturas voltadas para a mineração, construído por mão de obra indígena escravizada por volta de 1600.
Situado no ponto de confluência de dois rios do Sistema Cantareira, o Tanque Grande represava grande volume de água, que era conduzida por gravidade ao local da lavra através de canais a céu aberto e túneis escavados na rocha que somavam cerca de nove quilômetros de extensão. Uma reportagem, com a participação de Plens, foi produzida no local pela TV Cultura e pode ser vista em: www.youtube.com/watch?v=96ER7jF1rNI.
História esquecida
Segundo Plens, além da escravização da população ancestral, as terras que compunham a Sesmaria de Ururaí foram, pouco a pouco, tomadas por grileiros brancos, até que não restou nada do antigo território indígena. Simultaneamente, as menções aos índios nos documentos escritos foram diminuindo, vindo a desaparecer de todo por volta do século XVIII.
“Além de serem despojados de suas terras e eliminados ou assimilados fisicamente, os indígenas também foram apagados da história local, a ponto de sua antiga presença ser completamente ignorada pelos atuais moradores. Uma das contribuições de nosso projeto foi resgatar essa história esquecida”, disse a pesquisadora.
Com o declínio da mineração do ouro, a região passou a ser ocupada por pequenas fazendas, inicialmente com mão de obra escrava indígena e depois com mão de obra escrava negra.
“A documentação mostra que essas fazendas eram muito afetadas pelas intempéries, com o transbordamento dos rios e o arraste das pontes pela correnteza na estação chuvosa. Talvez em função disso, Guarulhos não conseguiu se tornar autossuficiente, dependendo da compra de alimentos em outras áreas”, disse Plens.
“Mais tarde, com a instalação de olarias, o sentido do comércio principal se inverteu, e Guarulhos passou a fornecer tijolos para São Paulo. Algumas das principais ruas do centro atual eram, no passado, ocupadas por olarias”, contou.
Depois das olarias, vieram, sucessivamente, as fábricas históricas, as empresas multinacionais, o aeroporto e a degradação ambiental, culminando na crise hídrica da Cantareira. Toda essa história, que se estende do século XVI ao século XXI, e se expressa no patrimônio ou no discurso da população acerca do patrimônio, foi resgatada pela pesquisa. “No total, inventariamos quase 200 patrimônios”, disse Plens.
A pesquisadora conta que algo que chamou muito a atenção no trabalho de campo, quando ia para os sítios arqueológicos associados à mineração do ouro, “foi o grande número de vestígios de oferendas ou despachos deixados nas matas ou nos leitos dos rios agora secos pelos adeptos das religiões de origem africana”.
“Em toda a minha atuação anterior como arqueóloga, eu nunca tinha visto tantos vestígios desse tipo. Depois, como integrante do conselho do patrimônio da cidade, tive acesso a um longo estudo circunstanciando o pedido de tombamento daquele que teria sido o primeiro terreiro de candomblé do Estado de São Paulo, instalado na região em meados do século XX”, relatou.
Conforme a pesquisadora, por mais que o estudo apresentasse documentos demonstrando a importância daquele patrimônio, o pedido de tombamento havia sido negado.
“Resolvi investigar o assunto e, com a participação de alunos, descobrimos que Guarulhos tem mais terreiros por quantidade de população do que qualquer outro município paulista. Foi uma surpresa”, disse.
Esse primeiro terreiro do Estado de São Paulo, cujo tombamento foi negado, veio a ser depois completamente destruído. Assim, o estudo evidenciou que, além de esconder o indígena, a sociedade local procurou esconder também o negro. Quanto a isso, o município nada mais fez do que reproduzir o padrão hegemônico de construção social da memória no Brasil.
“Resgatar a história dessas presenças que foram esquecidas é fundamental para que os habitantes atuais de Guarulhos possam construir uma autoimagem mais verdadeira”, disse Plens.
Agência FAPESP