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Publicado pelo sociólogo Antonio Candido há exatos 50 anos, o livro “Os Parceiros do Rio Bonito” marca um período do pensamento erudito brasileiro em que, pela primeira vez, os olhares se voltaram à figura do caipira – personagem até então marginalizado e estigmatizado, que passa a ser visto como sujeito de identidade dos paulistas e, possivelmente, de todos os habitantes do país.
A análise foi feita por José de Souza Martins, professor emérito de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e membro do Conselho Superior da FAPESP, durante conferência apresentada na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM), no dia 19 de novembro.

O evento, que contou com a participação do presidente da FAPESP, Celso Lafer, é o terceiro de uma série de colóquios sobre pensadores brasileiros organizados pela BBM. Teve como objetivo homenagear e discutir a obra na qual Antonio Candido retrata a sociedade caipira de São Paulo, particularmente da região de Bofete, desde suas relações sociais básicas até os meios elementares de subsistência, técnicas de plantio, dieta e festas religiosas. Analisa ainda como a expansão da economia capitalista descaracteriza a vida rústica tradicional e causa o empobrecimento do caipira, que precisa se adaptar ao “mínimo vital”.

“O livro é um marco, pois encerra uma era iniciada em 1887, quando Pedro Vaz – um primo de Fagundes Varela [ poeta romântico] – apresentou-se com sua viola caipira no palco do Teatro Provisório, na rua Boa Vista, que viria a se tornar o Teatro Santana. A apresentação foi precedida por escritos do poeta Ezequiel Freire nos jornais de São Paulo chamando atenção para o fato de que, finalmente, um violeiro de viola caipira se apresentaria em um teatro de verdade, um cenário da cultura erudita”, relatou Martins.

A viola caipira, pela primeira vez, subia aos palcos de um teatro frequentado por pessoas cultas da cidade de São Paulo. Até então, acrescentou Martins, o instrumento representava um traço da falta de caráter do escravo fugido, tida como coisa de gente à toa, que gosta de folia e de farra, mas não de trabalho.

“Ser violeiro era um estigma. Aparecia, com frequência, no anúncio de escravos fugidos, como um entre outros estigmas, como as cicatrizes e os defeitos físicos, traços que o depreciavam até como animal de trabalho. Era um traço da cultura caipira que estigmatizava a viola e o violeiro. Ser caipira era um sinal de bastardia – termo que se usava no século 18 e que Antonio Candido cita nos documentos que transcreve. O caipira não tinha nome. Era bastardo porque mestiço, filho de branco com índia”, lembra Martins.

Entre os intelectuais que se voltaram à figura do caipira naquele período, Martins destacou o pintor Almeida Júnior, autor de quadros como “Caipiras Negaceando”, “O Violeiro” e “Amolação Interrompida”. Citou também o escritor e humorista Cornélio Pires, considerado por ele o criador da música sertaneja por adaptar a música caipira a um formato capaz de obter sucesso na indústria fonográfica. Mencionou ainda o escritor Monteiro Lobato, que reforçou a imagem negativa do caipira com seu personagem Jeca Tatu, preguiçoso e avesso ao progresso.

De acordo com Martins, a ideia corrente na época era de que o caipira não havia sido feito para o progresso e, portanto, representava um entrave ao desenvolvimento econômico e social do país.

“Antonio Candido, com Os Parceiros do Rio Bonito, encerra o ciclo iniciado por Pedro Vaz e sua viola, que tratou o caipira como sujeito de identidade daquela extensa parte da sociedade brasileira que Alfredo Ellis definiu como Paulistânia, a extensa região que vai de Lajes, em Santa Catarina, até o Mato Grosso do Sul, boa parte do Mato Grosso, Goiás e norte de Minas Gerais, a área de influência bandeirista”, afirmou o professor emérito da USP.

Seu livro é o marco de um ciclo novo, que faz do caipira objeto de conhecimento científico e referência na explicação sociológica da sociedade brasileira, afirmou Martins. Segundo ele, Antonio Candido analisa os sujeitos de sua obra como grupos dinâmicos, enraizados na cultura caipira e, no entanto, não indiferentes à possibilidade da inovação e da transformação social.

“O trabalho de Antonio Candido difere de outros feitos na época, pois mostra que, se o caipira não foi feito para o progresso, também não foi feito para o imobilismo. Há muita criatividade e invenção social na cultura caipira”, disse Martins.

“Antonio Candido não procura um caipira original, que nunca foi contaminado pela economia de mercado. O caipira do Antonio Candido é um caipira que se organiza e se manifesta depois da crise da escravidão, depois da crise do colonato, depois da decadência do café. Quando a fazenda novamente recorre ao caipira. E ele se adapta à crise e reinventa sua cultura. A resposta do caipira à crise demonstrada pelo Antonio Candido não é uma manifestação de imobilismo, mas de uma altíssima competência inventiva e criativa cuja matriz está na cultura caipira”, avaliou.

Para Martins, Os Parceiros do Rio Bonito pode ser considerado o equivalente paulista de Casa Grande e Senzala, obra do sociólogo Gilberto Freyre que analisa a formação da sociedade brasileira no contexto do complexo canavieiro do Nordeste, dominado pela casa-grande e por outro tipo de mestiçagem, a de branco e negro.

Os Parceiros do Rio Bonito é o grande livro da sociologia brasileira por ser o oposto de Casa Grande e Senzala. Freyre explica o Brasil na perspectiva da casa-grande e da sociedade do canavial, do Nordeste açucareiro. Antonio Candido fez o que todo sociólogo com formação antropológica deveria fazer ainda hoje, inverter o percurso: partir das figuras irrelevantes da realidade social, dos ínfimos, como referência da pesquisa e da interpretação. São os pequenos que falam mais sobre a realidade social. É na estratégia que eles são capazes de desenvolver para sobreviver que estão as estruturas sociais profundas que são explicativas de coisas que não são visíveis no plano do meramente fenomênico. Freyre escolheu a figura que mais acoberta, que é o senhor da casa grande. Antonio Candido escolheu o caipira, que é a figura que mais revela”, concluiu Martins.

Na abertura da conferência, Lafer – que integra o Conselho Deliberativo da BBM – destacou que a realização do colóquio visa promover uma discussão intelectual relacionada às atividades da biblioteca, dedicada principalmente a assuntos brasileiros.

O presidente da FAPESP também ressaltou que Os Parceiros do Rio Bonito não é um estudo de comunidade, como era a prática sociológica e antropológica da época. “É algo muito diferente e esse é um capítulo da sua originalidade. Esse livro foi sendo revalorizado ao longo do tempo, mas nunca entrou no mainstream da reflexão das Ciências Sociais no Brasil”, afirmou.

Agência FAPESP