A conclusão é de um estudo de doutorado, realizado no Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFICH) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com Bolsa da FAPESP, que acaba de ganhar a 8ª edição do Prêmio CES para Jovens Cientistas Sociais de Língua Portuguesa.
Instituído pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, de Portugal, o prêmio é atribuído bienalmente a pesquisadores da área de Ciências Sociais com até 35 anos de idade, originários de países de língua portuguesa. Um dos objetivos principais da distinção é “promover o reconhecimento de estudos que contribuam, pelo seu excepcional mérito, para o desenvolvimento das comunidades científicas de língua portuguesa”.
O estudo já havia recebido em 2012 uma menção honrosa no “Concurso Brasileiro Anpocs de Obras Científicas e Teses Universitárias em Ciências Sociais”, realizado pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais.
“Procurei, em meu trabalho, analisar a percepção de escritores negros ou representantes da literatura periférica sobre o Brasil e, ao mesmo tempo, entender as aproximações entre as Ciências Sociais e os movimentos de ativismo político e cultural negros e a literatura negra no país que, ao meu ver, era uma lacuna na discussão da história da sociologia brasileira”, disse Mário Augusto Medeiros da Silva, autor do estudo, à Agência FAPESP.
Ele analisou a produção literária no período de 1960 e 2000 de escritores autoidentificados como negros ou “periféricos”, como Carolina Maria de Jesus (1914-1977), Paulo Lins, Reginaldo Ferreira da Silva – o Ferréz – e o coletivo de escritores negros Quilombhoje.
De acordo com Medeiros da Silva, as obras desses autores refletem sobre a sociedade brasileira do ponto de vista de suas condições étnica e social e de quem vive e vivencia a realidade das periferias urbanas brasileiras. Além disso, despontaram no mercado editorial brasileiro no momento em que os movimentos de ativismo político e social em defesa dos direitos civis dos negros começaram a ganhar força e as questões abordadas nessas obras começaram a ser discutidas mais profundamente em áreas como a Sociologia e a Antropologia.
Na década de 1950 e início dos anos de 1960, por exemplo, questões como a democracia racial e direitos sociais das camadas mais pobres e desfavorecidas da sociedade foram muito discutidas na sociedade brasileira.
Nesse período, os sociólogos Roger Bastide (1898-1974) e Florestan Fernandes (1920-1995) publicaram o livro Brancos e negros em São Paulo, resultado de uma pesquisa financiada pela Unesco sobre as relações raciais no país. Na mesma época, Carolina Maria de Jesus –escritora negra e catadora de papel em São Paulo – publicou o livro Quarto de despejo, em 1960.
Mas esse movimento efervescente de discussão sobre questões raciais foi interrompido com o golpe militar de 1964. “Quando ocorreu o golpe militar, tanto a Sociologia como o ativismo político e cultural negro entraram em rota de colisão com a ditadura: foram perseguidos e o movimento perdeu força”, disse Medeiros da Silva.
O movimento de ativismo negro só retornaria no fim da década de 1970 quando, coincidentemente, também ressurgiram autores de literatura negra como o coletivo cultural Quilombhoje, sediado em São Paulo, que começou a publicar em 1978 a série de antologias Cadernos Negros, que circulam até hoje. “Mas a Sociologia brasileira estava discutindo sobre outras coisas nessa época e o debate sobre o assunto foi alterado sensivelmente”, disse Medeiros da Silva.
Interesse renovado
As Ciências Sociais voltariam a se interessar por questões relacionadas ao movimento ativista negro, segundo Medeiros da Silva, no início da década de 1980, quando a Antropologia e a Sociologia iniciaram uma discussão sobre cidades, urbanismo e as periferias urbanas no Brasil.
Nesse período, Alba Zaluar, professora da Unicamp, iniciou uma pesquisa sobre o cotidiano na periferia carioca, intitulada Crime e criminalidade nas classes populares, que resultou no livro A máquina e a revolta: as organizações populares e os significados da pobreza.
Para realizar a pesquisa, Zaluar teve como assistente Paulo Lins, que realizou entrevistas com moradores da comunidade de Cidade de Deus, no Rio de Janeiro.
Incentivado por Zaluar e pelo crítico literário e também professor aposentado da Unicamp Roberto Schwarz, Lins escreveu o livro Cidade de Deus, publicado em 1997, que deu origem ao filme homônimo.
“Podemos dizer que Paulo Lins, enquanto um autor negro que nunca negou essa condição, foi incentivado por cientistas sociais a escrever um romance que discute o Brasil do ponto de vista da periferia”, avaliou Silva. “O caso dele é emblemático da relação entre as Ciências Sociais, Literatura e ativismo cultural, que é algo que procurei discutir e demonstrar na minha tese”, afirmou.
Ainda no fim da década de 1990, o escritor Ferréz também surge no cenário literário brasileiro com o lançamento de Capão Pecado. Na avaliação de Medeiros Silva, esse livro deu uma contribuição importante ao colocar em discussão a ideia de uma literatura periférica brasileira, feita por escritores que vivem nas periferias urbanas. No entanto, o conceito foi lançado aparentemente desvinculado de ações que ocorreram no passado, realizadas por escritores que tinham propostas semelhantes, como Carolina Maria de Jesus.
As Ciências Sociais voltariam a discutir novamente esse assunto nos anos 2000, com o estudo de mestrado Literatura Marginal: os escritores da periferia entram em cena, realizado entre 2004 a 2006 pela antropóloga Érica Peçanha do Nascimento na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), também com Bolsa da FAPESP.
“As ideias de literatura negra e literatura periférica têm um parentesco muito próximo e a forma como os autores desses dois movimentos pensaram a sociedade brasileira são muito semelhantes”, afirmou Silva.
“A história recente da sociologia brasileira, no que diz respeito à questão racial, não poderia ter sido feita se não tivesse havido um encontro entre sociólogos, como Bastide e Fernandes, com ativistas políticos, culturais e esses escritores negros”, avaliou.
Agência FAPESP