Autor de uma obra monumental de dezenas de milhares de páginas, Victor Hugo se consagrou a diferentes gêneros literários, ciências, artes e atividades políticas. Ao longo do século XIX, Hugo produziu intelectualmente durante 70 anos, de forma ininterrupta e espetacular. Viveu sobretudo sob a ordem do literário, mas produziu, de forma menos popular, mas altamente valorizada, sob a ordem das artes plásticas. Sua vasta obra pictórica, marcada mais pela natureza do que pela cultura, compreende para além de 3.500 desenhos.
Homem de um século e de uma nação que testemunhou o império, a monarquia e a república, e que vivenciou tensas insurreições sociais, Hugo passou de um lado a outro do sistema ideológico de sua época, assim como encarnou diferentes papéis na vida política, sendo ativista, exilado, deputado e senador. Exilado de fato por Louis Bonaparte, contra quem se rebelara diante do golpe de estado, Hugo se torna exilado por opção ao receber a anistia sete anos depois, autoexilando-se por mais doze anos na ilha anglo-normanda de Guernesey. O poeta retornará à França apenas mediante o retorno da liberdade e a queda de Napoleão III.
Ao longo de sua trajetória política, Hugo abraçou causas distintas, mas, sobretudo humanitárias, como a luta contra a miséria, a abolição da escravidão e da pena de morte, a liberdade no ensino (a laicidade), a emancipação e os direitos da mulher, a formação dos Estados Unidos da Europa. A defesa de suas causas ultrapassou o território francês, fazendo de Hugo um interlocutor mundial durante o século XIX, unindo-se a embates sociopolíticos em outros países da Europa, em Cuba, no México, nos Estados Unidos e até mesmo no Brasil. Com a sociedade brasileira, Hugo estabeleceu estreitas relações, configurando-se como correspondente de alguns dos nossos abolicionistas, como José do Patrocínio, ou recebendo visitas da parte de Dom Pedro II, seu grande admirador e leitor.
No século XIX, os franceses redescobriram o Brasil após as tentativas de aqui se instalarem nos séculos XVI e XVII, no Rio de Janeiro (França Antártica, 1555) e no Maranhão (França Equinocial, 1594, 1610). A influência da cultura francesa no Brasil se inicia com a vinda da missão artística no início do século XIX, a pedido de Dom João VI, à qual seguirá uma vaga de imigrantes qualificados em diferentes domínios, que muito contribuem para o desenvolvimento urbano do Rio de Janeiro. Em pouco tempo a literatura francesa se caracteriza como a mais consumida pelas classes letradas no país.
Por sua vez, Hugo vai rapidamente se confirmar como a principal presença literária estrangeira no século XIX brasileiro. Muitos de seus textos tornaram-se familiares entre nós quase ao mesmo tempo em que na França. Alguns deles eram citados em tribunas, na imprensa e nos discursos políticos por todo o país. A admiração nutrida por Hugo em território nacional não era atribuída apenas ao escritor romântico, mas, sobretudo ao autor político, que fez de sua obra um retrato dos acontecimentos e das inquietações do homem no século XIX.
A figura de Hugo constituiu-se em referência e fonte de inspiração para a intelectualidade brasileira da época; lido, admirado, citado, imitado, adaptado e traduzido em todos os gêneros de sua obra literária, nos domínios do conhecimento aos quais se dedicou (a história, a política, a filosofia) e nas artes (as artes plásticas, a arquitetura, a música). De Gonçalves Dias, Euclides da Cunha e Machado de Assis a Carlos Gomes e Gama Malcher, Hugo imprimiu influências marcantes em nossa literatura e na sociedade brasileira oitocentista.
Neste ano, comemoramos os 210 anos de Victor Hugo e a UnB discutirá não só o seu legado literário e artístico, mas sua atuação em outros domínios do conhecimento e no próprio desenvolvimento da sociedade, assim como seus embates em torno do problema da miséria, da sujeição feminina ou da colonização. Durante os trabalhos desenvolvidos, pretende-se elucidar não só o vigor e o impacto da obra hugoana, mas como Hugo, verdadeiro mediador cultural, permanece atuante na contemporaneidade.
Através dos diferentes diálogos hugoanos, serão abordadas as intersecções com o cinema, a pintura, a música, os quadrinhos ou a televisão; a interlocução com teóricos como Lukács, Derrida, Bakhtin e Lacan; o impacto e a comunicação com as literaturas de língua portuguesa; alguns dos temas mais caros ao poeta como a monstruosidade, o riso, a natureza ou a fatalidade; e evocaremos a poesia hugoana e seus problemas de tradução. Na ocasião, homenagearemos também os 150 anos do romance Os Miseráveis, ícone da literatura oitocentista e espécie de epopeia do homem em abismo.
Hugo utiliza em sua obra a metáfora de homem oceano para designar tudo o que faz fluxo e refluxo do pensamento humano num espírito inovador e visionário. Refere-se àqueles que carregam no espírito o infinito e o insondável; aí esse espírito passa a ser denominado gênio, como é o caso de Ésquilo, Isaías, Juvenal, Dante, Michelângelo, Shakespeare. Segundo Hugo, contemplar essas almas seria como contemplar o oceano. E é essa metáfora de homem-oceano que nos parece se adequar melhor à figura de Hugo, cuja obra se caracteriza pela amplitude, o polimorfismo e a permanência; à dimensão do próprio oceano.
Júnia Regina de Faria Barreto
UNB Online