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Gerar conhecimento estratégico sobre o tema da violência no namoro e no ‘ficar’ dos adolescentes brasileiros: este foi o objetivo de um estudo pioneiro realizado por pesquisadores de nove universidades públicas e da Fiocruz. O trabalho, que teve início em 2007, coletou, produziu e analisou dados quantitativos e qualitativos de âmbito nacional.
O estudo foi realizado com cerca de 3.200 jovens, de 15 a 19 anos, matriculados em escolas públicas e particulares de dez cidades (Belo Horizonte, Brasília, Cuiabá, Florianópolis, Manaus, Porto Alegre, Porto Velho, Rio de Janeiro, Recife e Teresina). Os resultados da investigação deram origem ao livro Amor e Violência: um paradoxo das relações de namoro e do ‘ficar’ entre jovens brasileiros, lançamento da Editora Fiocruz. A coletânea – organizada pelas pesquisadoras Maria Cecília de Souza Minayo, Simone Gonçalves de Assis e Kathie Njaine, do Centro Latino-Americano de Estudos sobre Violência e Saúde (Claves/Fiocruz) – faz uma síntese dos achados, mas também das interrogações do estudo.

“O que cotidianamente vemos na televisão, lemos nos jornais e ouvimos em conversas entre amigos sobre fatos concretos de mortes, agressões e lesões entre jovens nas relações afetivo-sexuais aqui se revela com dados e informações colhidos em um processo de intersubjetividade com estudantes de norte a sul do país”, resumem as organizadoras na apresentação do livro. “Nosso intento não foi apenas criar um conhecimento novo; ele vai muito além da publicação do livro. Envidaremos todos os esforços possíveis para que as descobertas aqui apresentadas possam subsidiar políticas, programas e planos de ação nos campos social, educacional e de saúde”, completam. A seguir, em entrevista, a pesquisadora Cecília Minayo discute alguns dos principais temas tratados na coletânea.  

Logo o primeiro capítulo do livro aborda a condição juvenil no século XXI. O significado de ‘ser jovem’ sofreu transformações nos últimos tempos? Quais as principais mudanças e permanências?
O significado de ser jovem mudou muito nos últimos tempos, em vários sentidos, no mundo e no Brasil, principalmente para a classe média. Por causa da elevação da expectativa de vida, o tempo da juventude se ampliou – em vários países da Europa, atualmente, já o consideram até 30 anos. Essa ampliação – que é histórica, pois a própria delimitação do tempo da adolescência e da juventude é uma criação da modernidade – ocorreu por causa das exigências de formação muito mais prolongada nesta era globalizada e extremamente competitiva, e por causa do índice elevado de desemprego, que, entre os jovens, chega a ser o dobro do que na população adulta. Como consequência, os jovens ficam muito mais tempo na casa dos pais e constituem família tardiamente. 

Nas classes mais pobres, a realidade vem mudando também, porém muito mais lentamente. Os jovens permanecem mais tempo na casa dos pais porque estão desempregados ou porque o que ganham não é suficiente para se manter. Muitos jovens das classes populares continuam, ao contrário, a ter a juventude reduzida porque constituem família muito cedo. Por outro lado, a mudança mais fundamental é a ampliação do acesso à educação formal, que vem ocorrendo pelo efeito de políticas afirmativas. 

Houve mudanças também nas relações amorosas entre os jovens?
Quanto às relações amorosas contemporâneas, elas são mais provisórias, temporárias e contingentes, mas ainda estão impregnadas pela força da reprodução de padrões afetivo-sexuais tradicionais. Constatamos que o machismo continua forte e vigente, constituindo-se como um (anti)valor de longa duração. As violências mais graves são cometidas por homens, sobretudo quando se sentem preteridos ou traídos, mesmo nas relações de namoro, mantendo-se uma visão arcaica da mulher como posse e objeto do poder masculino. No entanto, existem mudanças provocadas, particularmente, pelas mulheres, que se colocam numa condição de parceiras capazes de questionar e propor novas modalidades de relacionamento. Muitas delas também adotam a violência física e psicológica como argumentos relacionais com seus namorados, repetindo o que era considerado essencialmente como comportamento masculino. Este último ponto, que já vinha sendo observado em estudos internacionais e nacionais, foi constatado na pesquisa que deu origem ao livro, mostrando que elas – proporcionalmente e sem considerar a gravidade do ato – agridem tanto quanto os rapazes. Em geral, o ciúme é o combustível das mútuas agressões.

É comum ouvirmos falar da violência do marido contra a esposa, do homem contra a mulher. Na pesquisa, vocês identificaram casos de violência praticada pelas meninas?
O livro todo, na verdade, trata de questões de gênero na medida em que analisa relações entre os jovens. A pesquisa mostra que, em geral, as agressões praticadas pelos rapazes são mais cruéis e causam danos físicos maiores. Porém, a não ser no caso da violência sexual, que é predominantemente praticada pelos homens, os outros tipos são comuns de ambas as partes. É importante ressaltar que as violências físicas, sexuais e psicológicas vivenciadas ou praticadas pelos jovens, frequentemente, ocorrem simultaneamente, indicando a necessidade de termos sempre em mente que não há características únicas e simplificadas que identifiquem uma pessoa como vítima ou agressora. Há, ao contrário, uma constante interseção de papéis entre vítimas e perpetradores, por parte tanto dos rapazes como das moças. No entanto, conceber que jovens de ambos os sexos, ao interagirem na relação afetiva, atuam de forma violenta não significa diminuir a importância da subordinação feminina. A violência contra a mulher no ambiente privado – incluindo-se os feminicídios – encontra-se entre as violações de direitos humanos mais comuns e entre os problemas sociais mais relevantes e com maiores repercussões sobre a saúde desse grupo social, o que afeta toda a família.

E quanto às relações sexuais?
A pesquisa mostra também que estão naturalizadas no país, de norte a sul, as relações sexuais antes do casamento, que ocorrem predominantemente, mas não exclusivamente, por insistência dos rapazes e com o consentimento das meninas. Os meninos fazem uso de estratégias românticas para transar com suas parceiras, com o argumento de que isso seria uma prova de amor. E muitas meninas, em tais circunstâncias, reproduzem valores de subjugação. Mas um número não desprezível delas toma a iniciativa e testa os garotos na sua sexualidade, às vezes humilhando os que não querem transar com elas. A pressão para transar, em alguns casos, costuma acontecer já no ‘ficar’ e se torna comum na situação de namoro, que representa, para os jovens de hoje, um compromisso bastante forte, embora informal.

Uma resultante dessa permissividade para a experimentação sexual – com pouco mais da metade dos jovens usando camisinha em todas as relações, como constatamos – é que 9,2% das meninas já fizeram aborto alguma vez e 1,2%, mais de uma vez. Além disso, 0,4% das meninas entrevistadas e 2,1% dos rapazes já são pais. Meninos e meninas com filhos precocemente estão principalmente na Região Norte do país.

O ‘ficar’ dos adolescentes é um fenômeno bastante contemporâneo. A pesquisa apresentada no livro, portanto, é inovadora ao propor uma reflexão sobre o tema no âmbito científico e acadêmico. Gostaria que a senhora comentasse essa questão.
Enquanto o namoro indica escolhas um pouco mais elaboradas, o ‘ficar’ caracteriza uma fase de atração sem grandes compromissos de fidelidade, mas chega a envolver um tipo de relação que pode se estender a beijos e contatos sexuais. Esse fenômeno da vida dos adolescentes e jovens contemporâneos, que precede o namoro, tem a ver com as mudanças nas relações e culturas de gênero ocorridas, principalmente, a partir da segunda metade do século XX e muito influenciadas pela liberação feminina. As características do ‘ficar’ se encaixam com as da adolescência, etapa de intensa transformação biopsicossocial, em que a sexualidade está no auge, à flor da pele, momento em que se definem os papéis sexuais. A escolha dos parceiros amorosos ganha lugar de destaque, mas como um aprendizado sexual não restrito à genitalidade ou à primeira relação sexual.

Como a violência se manifesta no ‘ficar’?
Nosso estudo mostra que a violência no ‘ficar’, assim como no namoro, é predominantemente recíproca, isto é, ocorre entre casais violentos, onde ambos os parceiros são, provavelmente, perpetradores de violência. Vários fatores contribuem para o surgimento da violência afetivo-sexual entre adolescentes e jovens, mas estruturas familiares e comunitárias violentas são das mais relevantes. Nesse sentido, a violência na relação amorosa pode ser um continuum que começa com as agressões sofridas pelos jovens na família de origem, ainda na infância, e que tendem a se reproduzir.

Então, adolescentes que vivenciam cenas de violência em casa e na comunidade estão mais propensos a se envolverem em relações afetivo-sexuais violentas?
Os jovens que vivem em famílias violentas estão mais propícios a serem agressivos nas relações afetivo-sexuais. No entanto, e é preciso dizer isso em alto e bom som: não existe nenhuma determinação cultural ou social nesse sentido. Ou seja: qualquer jovem vítima de violência no seu lar pode ser capaz de compreender o mal que isso lhe causa ou causou e criar laços afetivos saudáveis.

Quais os tipos de violência identificados na pesquisa? Quais os mais prevalentes?
Os tipos mais prevalentes encontrados na pesquisa são a violência verbal, relatada por mais de 85% dos entrevistados; a violência sexual, que chega a quase 40%; as ameaças, com 29%; e a violência física, com 24%. É importante observar que a violência afetivo-sexual é uma forma de violência interpessoal; portanto, com a exceção da violência sexual – muito mais praticada pelos meninos do que pelas meninas –, quase todas as outras modalidades apresentam poucas diferenças entre quem sofre e quem perpetra. Em relação às violências perpetradas há similaridade entre os sexos; entre os estudantes da rede de ensino pública e particular; e entre os jovens de todas as dez cidades estudadas.

Em relação aos dados quantitativos, existe algum número que, particularmente, chame a atenção? Em caso afirmativo, por quê?
Embora possa parecer de baixa intensidade, destaca-se o elevado percentual de jovens que cometem violência verbal (85%) e ameaças (29%). No entanto, o que mais chama atenção é a convivência com vários tipos de violência ao mesmo tempo, como é o caso da co-ocorrência de violência psicológica e sexual (32,3%) e de todos os tipos de violência juntos (24,9%).

Apesar desses percentuais elevados e da ocorrência de vários tipos de violência ao mesmo tempo, determinados comportamentos violentos são considerados ‘normais’. Como ‘desnaturalizar’ o problema?
A sociedade, em geral, e a escola, em particular, quase sempre, consideram normais os arroubos temperamentais dos jovens ou prestam pouca atenção no que ocorre nas relações entre eles. No entanto, a violência no ‘ficar’ ou no namoro pode prenunciar ou dar continuidade à constituição de famílias violentas. Mostrar os dados deste estudo e retornar essas informações para os próprios jovens e, principalmente, para as escolas é uma forma de contribuir para dar visibilidade ao fenômeno, mostrando o que ele pode significar de pernicioso. Assim como na vida adulta, apesar de todas as lutas do feminismo, continua existindo, para muitos jovens, um mundo privado onde o direito e a lei não têm importância. Todos os estudos sobre o fenômeno da violência ressaltam que a violência familiar potencializa a violência social e vice-versa.

A pesquisa foi conduzida em dez cidades. Quais as principais diferenças regionais verificadas nos resultados?
Quanto à estrutura familiar, 61,1% dos jovens entrevistados tinham uma composição familiar tradicional; em Belo Horizonte, Florianópolis e Porto Alegre, a estrutura familiar tradicional prevaleceu (cerca de 66%). Os jovens de Brasília, Manaus, Recife e Rio de Janeiro tinham de 20% a 22% dos seus lares chefiados por mulheres. Jovens cujas mães viviam com padrastos estavam em maior número em Manaus (10%) e no Rio de Janeiro (12%). Quanto às expressões das relações, o ‘ficar’ e o ‘pegar’ são comuns a todas as regiões. A expressão ‘rolo’ é mais utilizada no Sudeste; o ‘colar’, no Nordeste; o ‘breth’, no Sul; e a ‘paquera’, no Centro-Oeste. Há muitas outras especificidades elaboradas detalhadamente no livro.

Porém, ainda que existam diferenças sociais em muitos aspectos das relações violentas entre jovens das classes médias e populares, entre meninos e meninas, entre os que frequentam escolas públicas e particulares, o fenômeno perpassa e se entranha por todos os grupos e segmentos. E um dos efeitos mais deletérios apontados por este e outros estudos é que a violência praticada nas relações de namoro é preditiva da ocorrência de violência conjugal.

A partir dos achados da pesquisa, como prevenir a violência nas relações afetivo-sexuais entre os adolescentes?
No Brasil, a preocupação com as violências nas relações de gênero é um tema muito recente. Apesar de haver alguns estudos sobre o assunto, eles são pontuais. Em outros países, como Estados Unidos, Canadá e Espanha, por exemplo, o tema já está mais consolidado, embora também seja bastante recente.
Nossa pesquisa é a primeira de âmbito nacional. Ela precisa, ao mesmo tempo, ter continuidade e ser devolvida à sociedade, especialmente às escolas. Estamos cuidando disso e já temos várias iniciativas, principalmente por parte dos pesquisadores das dez cidades que trabalharam conosco. Devo ressaltar também o curso à distância para professores sobre violência nas escolas, liderado pela pesquisadora Simone Gonçalves de Assis, com apoio do Ministério da Educação. Sempre buscamos encaminhar os resultados de nossas pesquisas para  os fóruns competentes. E, nesse caso, sabemos que o apoio social e comunitário é fundamental, conforme demonstram algumas pesquisas sobre intervenções realizadas, sobretudo nos Estados Unidos e no Canadá.