Mas esse processo não é linear, nem livre de controvérsias. Até há pouco, acreditava-se que o Sistema Solar havia adquirido as feições atuais a partir de um período turbulento ocorrido cerca de 700 milhões de anos depois de sua formação. Mas estudos recentes indicam uma estruturação bem mais precoce, que teria acontecido na faixa dos primeiros 100 milhões de anos, e, com maior probabilidade ainda, entre 10 e 60 milhões de anos. Um artigo publicado na revista Icarus, intitulado “Dynamical evidence for an early giant planet instability”, fornece evidências robustas a favor da estruturação precoce.
O estudo teve a participação de três pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Guaratinguetá: Rafael Ribeiro de Sousa (primeiro autor), André Izidoro Ferreira da Costa e Ernesto Vieira Neto (orientador).
O projeto recebeu apoio da FAPESP por meio de Bolsa de Doutorado e Bolsa de Estágio de Pesquisa no Exterior concedidas a Ribeiro; de Bolsa Apoio a Jovens Pesquisadores e de Auxílio a Pesquisa Apoio a Jovens Pesquisadores concedidos a Izidoro; e do Projeto Temático “A relevância dos pequenos corpos em dinâmica orbital”, coordenado por Othon Cabo Winter.
“A grande quantidade de detalhes hoje conhecidos pelas observações do Sistema Solar permite definir com precisão as trajetórias dos muitos corpos que orbitam o Sol. E essa estrutura orbital nos possibilita escrever a história da formação do sistema. A partir da nuvem de gás e poeira que circundava nossa estrela há cerca de 4,6 bilhões de anos, os planetas gigantes foram formados em órbitas mais próximas umas das outras e também mais próximas do Sol. Essas órbitas eram também mais coplanares e mais circulares do que as atuais. E estavam vinculadas entre si em sistemas dinâmicos ressonantes. Esses sistemas estáveis são os resultados mais prováveis da dinâmica gravitacional de planetas em formação com disco de gás protoplanetário”, disse Ribeiro à Agência FAPESP.
A descrição foi esmiuçada por Izidoro: “Os quatro planetas gigantes – Júpiter, Saturno, Urano e Netuno – cresceram no disco de gás e poeira em órbitas mais compactas. Seus movimentos exibiam uma forte sincronia devido a cadeias de ressonância. Assim, enquanto Júpiter completava três voltas ao redor do Sol, Saturno completava duas. E todos os planetas estavam envolvidos nessa sincronia, produzida pela dinâmica do disco gasoso primordial e pela dinâmica gravitacional dos próprios planetas.”
Ao longo de toda a região de formação do Sistema Solar externo, que inclui a zona situada além das órbitas atuais de Urano e Netuno, o Sistema Solar possuía, porém, uma grande população de planetesimais – pequenos corpos de rocha e gelo que são considerados os blocos de construção dos planetas e os precursores dos asteroides, cometas e satélites. E o disco exterior de planetesimais passou a perturbar o equilíbrio gravitacional do conjunto.
Assim, após a fase do gás, as ressonâncias foram quebradas. O sistema entrou em uma etapa caótica, com interações violentas entre os planetas gigantes e até mesmo com ejeções de planetas para o espaço exterior. “Plutão e seus vizinhos de gelo foram lançados para a região onde se encontram atualmente, no Cinturão de Kuiper. E o conjunto dos planetas migrou para órbitas mais distantes do Sol”, conta Ribeiro.
A existência do Cinturão de Kuiper foi proposta em 1951 pelo astrônomo holandês Gerard Kuiper (1905-1973) e confirmada por observações astronômicas posteriors. TRata-se de uma estrutura toroidal, semelhante a um pneu, formada por milhares de pequenos corpos que orbitam o Sol, com uma diversidade de órbitas nunca vista em outras regiões do Sistema Solar. Sua borda interior localiza-se onde fica atualmente a órbita de Netuno, a 30 unidades astronômicas de distância do Sol – sendo a unidade astronômica (UA) aproximadamente igual à distância média da Terra ao Sol. A borda exterior situa-se a cerca de 50 UA do Sol.
De volta à quebra de sincronia e ao desencadeamento da fase caótica, a questão é saber quando isso ocorreu. Se em uma etapa muito inicial, quanto o Sistema Solar tinha 100 milhões de anos ou até menos, ou em uma fase posterior, quando os planetas já tinham uma certa idade, provavelmente em torno de 700 milhões de anos.
“Até recentemente, a hipótese da instabilidade tardia predominava. A datação de rochas da Lua, coletadas por astronautas do Projeto Apollo, sugere que elas teriam sido criadas por impactos severos e simultâneos de vários asteroides e cometas na superfície lunar. Este cataclismo é conhecido como ‘Bombardeamento Tardio da Lua’. E, se aconteceu na Lua, teria acontecido também na Terra e nos demais planetas terrestres do Sistema Solar. Como no período de instabilidade planetária muito material, na forma de asteroides e cometas, foi lançado em todas as direções do Sistema Solar, deduziu-se, a partir da idade das rochas trazidas da Lua, que esse período caótico teria ocorrido tarde. Porém, nos últimos anos, a história do ‘Bombardeamento Tardio da Lua’ vem perdendo crédito”, afirma Ribeiro.
Conforme o pesquisador, se houvesse ocorrido, a catástrofe caótica tardia poderia ter destruído a Terra e os demais planetas terrestres do Sistema Solar. Ou provocado perturbações que os teriam colocado em órbitas totalmente diferentes das atuais. Além disso, descobriu-se que as rochas trazidas pelo Projeto Apollo foram produzidas por um único impacto – o que não seria de esperar se elas tivessem sido originadas por uma grande instabilidade planetária tardia. Esta teria gerado vários impactos diferentes, em função do espalhamento dos planetesimais pelos planetas gigantes.
“Nosso trabalho partiu da ideia de que a datação da instabilidade deve ser buscada de maneira dinâmica. A única maneira de que essa instabilidade pudesse ter ocorrido tardiamente seria se, no momento em que o gás acabou, houvesse uma distância relativamente grande entre a borda interna do disco de planetesimais, isto é, do disco de acreção planetária, e a órbita de Netuno. E essa distância relativamente grande não se sustentou no âmbito de nossa simulação”, sublinha Ribeiro.
O argumento é fácil de compreender. Quanto menor a distância, maior a influência gravitacional entre Netuno e o disco de planetesimais. Portanto, mais precoce o período de instabilidade. Inversamente, uma instabilidade tardia requer que a distância seja grande.
“O que fizemos foi esculpir, pela primeira vez, o disco de planetesimais primordial. Para isso, tivemos que voltar à formação dos próprios planetas gigantes de gelo, Urano e Netuno. A partir de um modelo construído pelo professor Izidoro em 2015, realizamos simulações computacionais que mostraram que a formação de Urano e Netuno pode ter sido oriunda de embriões planetários com as massas de algumas Terras. As colisões gigantescas dessas superterras explicariam, por exemplo, o fato de Urano ter seu eixo de rotação tombado”, diz o pesquisador.
Trabalhos anteriores já haviam evidenciado a importância da distância entre a órbita de Netuno e a borda interior do disco de planetesimais. Mas esses trabalhos partiam de um modelo em que os quatro planetas gigantes já estavam formados. “A novidade trazida pelo trabalho atual é que o modelo não se inicia com os planetas completamente formados, mas considerou Urano e Netuno ainda em fase de crescimento. E esse crescimento teria ocorrido a partir de duas ou três colisões de objetos com até cinco vezes a massa da Terra”, afirmou Izidoro.
“Imaginemos uma situação em que Júpiter e Saturno já estejam formados, mas que, em vez de Urano e Netuno, tenhamos de cinco a 10 superterras. Essas superterras seriam forçadas pelo gás a entrar na mesma sincronia de Júpiter e Saturno. Porém, como são numerosas, eles entrariam e sairiam, eventualmente colidindo. Devido às colisões, seu número seria reduzido, possibilitando a sincronização. No final, sobraram Urano e Netuno”, diz Izidoro.
E prossegue: “Durante a fase em que os dois gigantes de gelo estavam evoluindo no gás, o disco de planetesimais também foi sendo consumido. Parte do material foi agregada a Urano e Netuno, parte enviada para longe, para os confins do Sistema Solar. Assim, o crescimento de Urano e Netuno definiu a posição da borda interna do disco de planetesimais. O que sobrou desse disco compõe atualmente o Cinturão de Kuiper. Este é basicamente uma relíquia que sobrou do disco de planetesimais primordial, que era muito mais massivo”.
O modelo proposto é consistente com as órbitas atuais dos planetas gigantes e também com a estrutura observada no Cinturão de Kuiper. É consistente ainda com o movimento dos Troianos, asteroides que compartilham a órbita de Júpiter, e que teriam sido capturados durante a quebra do sincronismo.
Em trabalho publicado em 2017, os pesquisadores estudaram Júpiter e Saturno ainda em formação, com seu crescimento contribuindo para o deslocamento do Cinturão de Asteroides (leia mais em agencia.fapesp.br/26403/). O trabalho atual é uma espécie de continuação, que parte de um estágio em que Júpiter e Saturno já estão completamente formados, mas com seus movimentos ainda sincronizados. E descreve a evolução do Sistema Solar a partir daí.
“A interação gravitacional entre os planetas gigantes e o disco de planetesimais produziu perturbações no disco de gás, que se propagaram como ondas. Essas ondas geraram sistemas planetários compactos e síncronos. Quando o gás acabou, as interações entre os planetas e o disco de planetesimais romperam o sincronismo e deram origem à fase caótica. Levando em conta tudo isso, descobrimos que não houve nenhuma condição para que a distância entre a órbita de Netuno e a borda interna do disco de planetesimais se tornasse suficientemente grande para sustentar a hipótese da instabilidade tardia. Esta foi a grande contribuição do nosso trabalho: mostrar que a instabilidade aconteceu no patamar da primeira centena de milhões de anos, e que poderia ter ocorrido, por exemplo, antes da formação da Terra e da Lua”, conclui Ribeiro.
O artigo Dynamical evidence for an early giant planet instability pode ser acessado em www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0019103519301332.
Agência FAPESP