A insuficiência cardíaca pode ocorrer em consequência de um infarto do miocárdio, quando uma artéria coronária entupida impede a oferta de sangue para parte do coração, sobrecarregando o restante do tecido. Como resultado, o órgão reduz ao longo do tempo sua capacidade de bombear sangue para o corpo.
Os pesquisadores já fizeram o pedido de patente da molécula e da sua aplicação nos Estados Unidos. Ela pode eventualmente complementar ou mesmo substituir os medicamentos atuais usados para a insuficiência cardíaca, a maioria deles criada ainda nos anos 1980.
O estudo com a descrição da molécula foi publicado na Nature Communications. O nome SAMbA é um acrônimo em inglês para Antagonista Seletivo da Associação de Mitofusina 1 e Beta2PKC. A SAMbA tem a capacidade de impedir a interação entre uma proteína comum na célula cardíaca, a proteína Kinase Beta 2 (Beta2PKC), e a Mitofusina 1 (Mfn1), que fica dentro da mitocôndria, compartimento da célula responsável por produzir energia.
Quando interagem, a Beta2PKC desliga a Mfn1, impedindo a mitocôndria de produzir energia e, consequentemente, diminuindo a capacidade das células do músculo cardíaco de bombear sangue.
“Um dos achados importantes desse trabalho foi justamente essa interação, que até então não se sabia ser crítica na progressão da insuficiência cardíaca”, disse Julio Cesar Batista Ferreira, professor do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP) e líder do estudo. Ferreira começou a pesquisa com o tema em 2009, ainda durante o pós-doutorado na Escola de Educação Física e Esporte da USP com bolsa da FAPESP.
Depois de depositada a patente, o pesquisador espera que a molécula possa ser testada em outras doenças cardiovasculares além da insuficiência cardíaca, já que pode ter ação em patologias como hipertensão.
“Suspeitamos que a interação entre essas proteínas seja, de modo geral, um processo conservado em outras doenças degenerativas que apresentam disfunção mitocondrial”, disse Ferreira à Agência FAPESP.
Office boy e gerente
Em trabalhos anteriores, a equipe liderada por Ferreira no ICB demonstrou que a inibição da Beta2PKC, que é produzida em excesso na célula com insuficiência cardíaca, melhorava o funcionamento do coração com insuficiência. No entanto, a intervenção impedia outras funções da proteína, benéficas para o funcionamento do órgão cardíaco.
A novidade da molécula SAMbA é que ela faz uma inibição seletiva, apenas da interação da Beta2PKC com a Mfn1 presente na mitocôndria. As outras interações permanecem acontecendo.
Para explicar a diferença, Ferreira faz uma analogia. A célula cardíaca seria como uma empresa, com várias salas. A Beta2PKC circula pelo corredor dessa empresa e entra em diferentes salas, interagindo com os gerentes do setor correspondente para realizar seu trabalho.
No entanto, toda vez que entra em uma sala específica (a mitocôndria) o office boy (Beta2PKC) impede um gerente específico (Mfn1) de trabalhar. Na primeira molécula desenvolvida pelo grupo, era como se as portas de todas as salas se fechassem. O office boy não atrapalhava mais o gerente da mitocôndria, mas também não entrava em nenhuma outra sala e a empresa (a célula cardíaca) não funcionava harmonicamente.
O que a SAMbA faz é impedir apenas a interação da Beta2PKC com a Mfn1 presente na mitocôndria. “É como fechar apenas a porta da sala em que o office boy não deve entrar, deixando-o livre para entrar nas outras, mantendo a empresa em pleno funcionamento”, disse Ferreira.
Ratos infartados
Para chegar à SAMbA, foram realizados testes com proteínas recombinantes, células, animais e amostras de tecido de corações humanos com insuficiência cardíaca.
Primeiro os pesquisadores fizeram diferentes testes in vitro de interações entre a Beta2PKC e a Mfn1. No total, foram encontradas seis moléculas que fizeram a inibição, mas só a SAMbA a fez de forma seletiva, apenas na interação entre Beta2PKC e Mfn1.
Em seguida, a SAMbA foi testada nas células cardíacas humanas. Além de frear o avanço da doença, como fazem as drogas usadas atualmente, a molécula melhorou a capacidade da célula de se contrair (essencial para bombear o sangue do coração para o resto do corpo).
A molécula também diminuiu a quantidade de peróxido de hidrogênio na mitocôndria da célula cardíaca. A presença desse peróxido caracteriza o chamado estresse oxidativo, um sinal que maximiza a degeneração da célula cardíaca.
Por fim, os pesquisadores induziram infarto do miocárdio em ratos. Depois de um mês, o coração deles apresentava um quadro de insuficiência cardíaca. Cada rato recebeu então um dispositivo embaixo da pele, chamado de bomba osmótica, que liberava pequenas quantidades da SAMbA, ou de uma substância inócua usada como controle, durante seis semanas.
Diferentemente dos ratos que receberam a substância controle, os que receberam a SAMbA tiveram não só a doença bloqueada como uma melhora na função cardíaca.
“As drogas atuais freiam a progressão da doença, mas nunca fazem com que ela regrida. O que mostramos é que, ao regular essa interação específica, diminui-se a progressão e ainda traz a doença para um estágio mais leve”, disse Ferreira.
O próximo passo é disponibilizar a molécula SAMbA para outros grupos de pesquisa poderem testá-la em diferentes doenças e modelos experimentais. Além disso, é necessário testar a interação da molécula com outros medicamentos usados atualmente no tratamento da insuficiência cardíaca.
“A validação e a reprodução dos achados por outros grupos são críticos no processo de desenvolvimento da SAMbA como possível terapia na insuficiência cardíaca. Para isso, a busca de parceiros dos setores privado e público é necessária”, disse Ferreira.
As doenças cardiovasculares matam anualmente 17,9 milhões de pessoas, 31% de todas as mortes no mundo, segundo a Organização Mundial de Saúde. Globalmente, o infarto do miocárdio e a insuficiência cardíaca decorrente dele ainda são grandes fatores de morbidade e mortalidade.
O artigo A selective inhibitor of mitofusin 1-βIIPKC association improves heart failure outcome in rats (doi: 10.1038/s41467-018-08276-6) de Julio C.B. Ferreira, Juliane Campos, Nir Qvit, Xin Qi, Luiz H.M. Bozi, Luiz R.G. Bechara, Vanessa M. Lima, Bruno B. Queliconi, Marie-Helene Disatnik, Paulo M.M. Dourado, Alicia J. Kowaltowski e Daria Mochly-Rosen, pode ser lido em www.nature.com/articles/s41467-018-08276-6.
Agência FAPESP