Para comercialização do queijo canastra fora da região, os produtores precisam ter o selo do Sistema Brasileiro de Inspeção de Produtos de Origem Animal (Sisbi), concedido em Minas Gerais pelo Instituto Mineiro de Agropecuária (IMA). Uma parte deles, contudo, não consegue obter essa certificação, que atesta que o produto é seguro, por não atingir os requisitos sanitários. E quem conseguiu o selo reclama que os níveis de exigências para conquistá-lo – como de contagens microbiológicas do queijo – são muito rigorosos para uma queijaria artesanal.
“A luta dos queijeiros artesanais é tanto para abrir as fronteiras para a comercialização de seus produtos como também para mudar a legislação de modo que seja mais adequada às condições deles. Essas mudanças precisam ser embasadas em pesquisa”, disse Uelinton Manoel Pinto, professor da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (FCF-USP), à Agência FAPESP.
O pesquisador e colegas associados ao Centro de Pesquisa em Alimentos (FoRC, na sigla em inglês de Food Research Center) – um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPIDs) financiados pela FAPESP – têm trabalhado com produtores de queijo canastra a fim de auxiliá-los a fortalecer o setor.
A parceria resultou na criação da Rede de Pesquisa em Queijos Artesanais Brasileiros (Repequab), lançada em junho durante um tradicional festival de queijo canastra em São Roque de Minas – um dos sete municípios produtores de queijo nos arredores da Serra da Canastra.
O objetivo da rede de pesquisa é integrar pesquisadores brasileiros que atuam na área de queijos artesanais de forma a viabilizar parcerias e facilitar o intercâmbio de informações e de recursos humanos para o fortalecimento e atualização do setor queijeiro brasileiro.
“Os produtores de queijo artesanal precisam ter um melhor entendimento do que precisam fazer para produzir um queijo de qualidade e seguro para o consumo e atender a legislação”, disse Bernadette Dora Gombossy de Melo Franco, professora da FCF-USP e coordenadora do FoRC.
“Em geral, eles fazem as coisas direito, mas de forma muito empírica, baseando-se na experiência passada de geração para geração, sem saber muito bem a ciência por trás disso. Nosso objetivo é justamente ajudá-los a entender o que eles fazem e tentar contribuir para resolver a questão da comercialização dos queijos artesanais de forma segura”, disse.
No último dia 15 de junho foi sancionada a Lei federal 13.680, que dispõe sobre o processo de fiscalização de produtos alimentícios de origem animal produzidos no país de forma artesanal, incluindo os queijos.
A nova regulamentação desburocratiza a produção e a comercialização desses produtos, transfere a fiscalização aos órgãos de vigilância sanitária estaduais e cria um selo com inscrição ARTE para identificar esses produtos, que poderão ser comercializados livremente entre os estados.
Apesar de representar um avanço na liberalização da comercialização de produtos artesanais no país, a nova lei é vista com ressalvas. “Essa nova lei resolve o problema dos produtores que já estão de acordo com as normas sanitárias. Mas, para aqueles que não estão, quão eficiente será essa fiscalização?”, questiona Franco.
Tempo de maturação
Um dos obstáculos para a comercialização dos queijos artesanais da Serra da Canastra e de outras regiões produtoras em Minas Gerais – como Araxá, Campo das Vertentes, Cerrado, Serro, Serra do Salitre e no Triângulo Mineiro – para outros estados é o período de maturação do produto.
A fim de garantir a segurança microbiológica do queijo artesanal comercializado no país, uma lei federal de 2000 estabeleceu que o produto deve ser maturado por no mínimo 60 dias. Legislações posteriores reduziram esse prazo desde que os produtores comprovem, por meio de estudos técnicos e científicos, que a redução não compromete a qualidade e a inocuidade do produto.
Os queijos artesanais mineiros, por exemplo, são maturados por períodos que variam de 14 a 22 dias, dependendo da região produtora.
“Tem produtor que acredita que o queijo que ele fabrica atinge a maturação em 10 dias, mas, se o leite cru empregado na produção tem qualidade microbiológica ruim, 22 dias de maturação podem não ser suficientes para garantir a segurança microbiológica do produto. Está muito claro que mais estudos são necessários para validar o tempo de maturação de queijos artesanais”, disse Uelinton.
Os produtores também argumentam que os limites da quantidade de microrganismos aceitáveis em queijos artesanais estabelecidos pela legislação, como coliformes totais e Staphylococcus aureus, foram baseados em regulamentações para os laticínios e não para as queijarias artesanais.
A fim de auxiliar os produtores da Serra da Canastra a atender a legislação, os pesquisadores do FoRC têm testado queijos artesanais obtidos em propriedades produtoras na região e pesquisado os microrganismos indicadores de higiene e de patógenos presentes nos produtos.
Os resultados disponíveis até o momento indicam ausência de Salmonella em todas as 78 amostras analisadas e a presença de Listeria monocytogenes em apenas uma. Em relação aos microrganismos indicadores de higiene, cerca de metade está de acordo com os limites impostos pela legislação. Foi observado que grande parte dos queijos em desacordo com esses limites excede por pouco, o que tem pouca relevância microbiológica, segundo Uelinton.
“Os queijos de alguns produtores apresentaram níveis de coliformes totais entre 7,5 mil e 10 mil unidades formadoras de colônia por grama [UFC/g], por exemplo, o que é muito próximo do limite legal de 5 mil UFC/g estabelecido em Minas Gerais. Microbiologicamente esses níveis não são preocupantes, mas esses produtores poderiam ser autuados”, disse.
A fim de diminuir esse risco, os pesquisadores do FoRC promoveram um seminário científico durante o festival de queijo canastra em São Roque de Minas, abordando temas diversos, como microbioma do queijo, boas práticas de fabricação e a importância do “pingo” na qualidade do produto final, por exemplo.
Durante o seminário também foi distribuída uma cartilha sobre boas práticas na produção de queijos artesanais, preparada por pós-graduandos e pesquisadores do FoRC. Os laudos laboratoriais com os resultados das análises microbiológicas realizadas nos queijos foram discutidos com os produtores e apresentadas a eles medidas que poderiam ser tomadas para produção de queijos com contagens microbianas melhores.
“Além de poder colocar em risco a saúde do consumidor, a contaminação microbiana de um queijo artesanal pode também prejudicar a qualidade do produto. Os microrganismos podem causar defeitos no queijo, como rachaduras e olhaduras, que mudam a aparência típica do produto”, ressaltou Franco.
Microbiota do “pingo”
A variação da qualidade do “pingo” também pode interferir nas características do queijo e fazer com que o produto não atinja o padrão desejado pelo produtor.
A fim de tentar identificar o que faz com que um “pingo” seja melhor do que outro, os pesquisadores integrantes da rede de pesquisa têm caracterizado a microbiota de amostras dele obtidas nos diferentes produtores e tentado correlacionar esse fator com o queijo artesanal derivado.
Os pesquisadores também pretendem determinar os compostos químicos presentes nos queijos artesanais mineiros, empregando técnicas analíticas avançadas de ressonância magnética e metabolômica.
“Esperamos encontrar marcadores ou uma assinatura microbiológica típica de um queijo artesanal de qualidade produzido na região da Canastra para verificar no que ele se diferencia química e microbiologicamente de queijos de outras regiões ou de pior qualidade, por exemplo”, explicou Uelinton.
A próxima reunião da Rede de Pesquisa em Queijos Artesanais Brasileiros está agendada para o dia 9 de agosto, às 10h, na sede do FoRC, na rua do Lago, número 250, bloco C, na Cidade Universitária, em São Paulo.
A reunião está aberta a todos os interessados. Para participar é preciso enviar um e-mail para Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..
Agência FAPESP