A constatação, feita no âmbito de projetos coordenados por Paolo Zanotto, professor do ICB-USP, com apoio da FAPESP, foi descrita em um artigo publicado na revista Emerging Infectious Diseases, do Centers for Disease Control and Prevention (CDC), agência de proteção à saúde do governo dos Estados Unidos.
“Essa detecção é bastante preocupante porque sugere, primeiramente, que o período de transmissibilidade [contágio] do vírus da febre amarela pode ser mais extenso do que o esperado em uma infecção aguda [com duração de, no máximo, 10 dias]”, disse Zanotto à Agência FAPESP.
Segundo o conceito atual, o período de transmissibilidade da febre amarela inicia-se entre 24 e 48 horas antes do aparecimento dos primeiros sintomas e vai até três a sete dias após o início da manifestação da doença. Na maioria dos casos, os sintomas desaparecem após três ou quatro dias.
Um baixo percentual de pessoas infectadas entra em uma segunda fase mais tóxica no espaço de 24 horas após a recuperação dos sintomas iniciais, e metade delas morre em um período de sete a 10 dias.
Os pesquisadores acompanharam um paciente de 65 anos natural de São Paulo e que não entrou na fase tóxica da doença. Detectaram a presença de RNA (material genético) do vírus em quantidade significativa em amostras de urina e do sêmen 15 e 25 dias após o surgimento dos sintomas iniciais de febre amarela.
O genoma do vírus isolado da amostra de urina do paciente foi sequenciado. A análise do sequenciamento apontou que o vírus se agrupou a genótipos isolados na América do Sul, incluindo dois isolados em 2017 no Espírito Santo.
“Em um trabalho feito em colaboração com o grupo do professor Edison Durigon [do ICB-USP], já tínhamos identificado a presença dos vírus da dengue e de Zika na urina de pacientes infectados e, no caso do Zika, também no sêmen. Por isso, decidiu-se verificar se isso também ocorria com o vírus da febre amarela”, disse Zanotto.
“Essa descoberta, agora, sugere que o vírus da febre amarela também é um arbovírus [vírus transmitidos por vetores artrópodes hematófagos, que têm como hospedeiros animais vertebrados, como macacos e o homem] com capacidade de ser excretado pelo sistema urinário”, disse.
Os pesquisadores ainda não sabem quais podem ser as implicações da presença do vírus da febre amarela em amostras de urina e sêmen, além de com que frequência e por quanto tempo ele persiste nesses materiais biológicos, uma vez que analisaram um único paciente.
No caso do Zika, estudos anteriores, conduzidos em colaboração pelos grupos de Durigon e de Zanotto, mostraram que o vírus permanece no sêmen de pacientes durante meses e, depois, começa a decair lentamente. Além disso, também se confirmou que o vírus pode ser transmitido sexualmente.
“Ainda não temos uma boa amostragem para determinar por quanto tempo o vírus da febre amarela pode ser detectado na urina e no sêmen. Mas nossa estimativa, feita com base no acompanhamento do paciente que avaliamos durante um período de 21 dias após a observação dos sintomas iniciais da doença, é de que o vírus pode ser detectado nesses materiais biológicos pelo menos quase um mês após a infecção”, disse Zanotto.
Melhoria do diagnóstico
Na avaliação dos pesquisadores, os testes da presença do vírus da febre amarela, principalmente em amostras de urina de pacientes com suspeita de terem sido infectados, podem facilitar e melhorar o diagnóstico da doença.
Hoje, a confirmação clínica da infecção por febre amarela na fase precoce é baseada na detecção de RNA do vírus no sangue por sorologia, pela técnica de PCR de transcrição reversa (RT-PCR) ou pelo ensaio de imunoabsorção enzimática (ELISA, na sigla em inglês) – um teste que permite a detecção no plasma sanguíneo de anticorpos específicos, como a imunoglobulina M (IgM), que o organismo produz quando entra em contato com algum tipo de microrganismo invasor.
Esses testes são realizados geralmente quando pacientes com suspeita de terem sido infectados chegam aos hospitais. Mais de 50% dos infectados pelo vírus da febre amarela, porém, não apresentam sintomas da doença, como febre alta, calafrios, cansaço, dor de cabeça e muscular, além de náuseas e vômitos.
“As pessoas que têm sido hospitalizadas são as que apresentam os sintomas da doença. Esses casos graves representam apenas a ponta do iceberg do problema da infecção por febre amarela no país, uma vez que grande parte dos infectados é assintomática”, disse Zanotto.
Eventualmente, a detecção do vírus por amostras de urina pode facilitar e agilizar o diagnóstico desses pacientes assintomáticos, principalmente em locais onde foram registradas mortes por febre amarela, indicaram os pesquisadores.
Os testes de diagnóstico de febre amarela em urina e sêmen também podem contribuir para reduzir os resultados falso-negativos e fortalecer a confiabilidade dos dados epidemiológicos durante surtos da doença, como o que ocorre atualmente em São Paulo e Minas Gerais, apontaram os pesquisadores.
“A detecção de vírus em amostras de urina já tem sido utilizada para confirmar infecções por outros flavivírus, como o vírus do Nilo Ocidental, o vírus Zika e o da dengue. No caso do vírus da dengue, esse método ainda não deve se tornar padrão, porque até agora não sabemos certamente quantas pessoas infectadas, de fato, apresentam o vírus na urina. Mas isso precisa ser estudado”, apontou.
Por não ser invasiva, como o diagnóstico sanguíneo, a detecção do vírus da febre amarela na urina tem se mostrado útil e já está sendo integrada na rotina de vários grupos de pesquisadores envolvidos no estudo do surto atual da doença em São Paulo, segundo Zanotto.
Transmissão urbana
Os pesquisadores do ICB-USP, em colaboração com o professor Amaro Nunes Duarte Neto e vários outros pesquisadores do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da USP – liderados pelo professor Paulo Saldiva – estão verificando a presença do vírus da febre amarela em material de necrópsias, como diversos tecidos celulares, de pacientes diagnosticados com febre amarela que entraram na fase tóxica da doença.
As análises preliminares desses materiais indicam a presença do vírus em quantidades significativas em diferentes órgãos, inclusive no cérebro.
“Estamos encontrando o vírus praticamente em todas as amostras geradas pelo professor Duarte Neto de órgãos desses pacientes infectados que não resistiram à doença. Vários testes de identificação viral em órgãos estão sendo replicados no Instituto Adolfo Lutz, no Departamento de Gastroentrologia da Faculdade de Medicina da USP e no ICB para que se tenha maior confiança nos resultados” contou Zanotto.
Com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), os pesquisadores do ICB-USP estão sequenciando e tentando isolar o vírus para estudar in vitro a variabilidade viral nos diferentes tecidos e analisar o que eventuais diferenças possam significar em termos de comportamento e capacidade de infecção em células humanas e vetores.
“Em colaboração com o grupo do professor João Renato Rebello Pinho, do Departamento de Gastroenterologia da Faculdade de Medicina da USP, estamos comparando a diversidade viral entre pacientes que vieram a óbito e os que se recuperaram”, disse Zanotto.
“Devido, inclusive, a observações feitas pelos pesquisadores do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da USP, precisamos verificar se o vírus que circula em São Paulo é o mesmo ou é uma variante do que identificamos na urina e no sêmen do paciente que estudamos e que sobreviveu à doença, que é um vírus que causou um surto em Minas Gerais, veio para São Paulo e que agora está em volta da cidade”, disse Zanotto.
Esta semana os pesquisadores também devem iniciar pesquisas de campo, junto com equipes de outras unidades da USP, os grupos do pesquisador Renato de Souza, da Unidade de Arbovirologia do Instituto Lutz, e da pesquisadora Margareth Capurro, do Departamento de Parasitologia do ICB-USP, com o objetivo de verificar se tem ocorrido a transmissão urbana do vírus da febre amarela – por meio do mosquito Aedes aegypti – em São Paulo.
“Apesar da situação que temos vivido, com um grande número de casos de infecção na capital, ainda não temos evidência concreta e inequívoca de que tem ocorrido transmissão urbana da doença”, disse Zanotto. “Essa é uma informação crucial para poder avaliar possíveis estratégias de resposta ao vírus, inclusive estratégias de vacinação. Tentaremos obter essas respostas nas próximas semanas.”
O artigo Yellow fever vírus DNA in urine and semen of convalescent patient, Brazil (doi: 10.3201/eid2401.171310), de Carla M. Barbosa, Nicholas Di Paola, Marielton P. Cunha, Mônica J. Rodrigues-Jesus, Danielle B. Araujo, Vanessa B. Silveira, Fabyano B. Leal, Flávio S. Mesquita, Viviane F. Botosso, Paolo M.A. Zanotto, Edison L. Durigon, Marcos V. Silva e Danielle B.L. Oliveira, pode ser lido em wwwnc.cdc.gov/eid/article/24/1/17-1310_article.
Agência FAPESP