A doença afeta milhares de pessoas todos os anos e é assintomática em 80% dos casos. Cerca de um em cada cinco infectados desenvolve febre e outros sintomas. Em menos de 1% dos casos, especialmente entre idosos e crianças, a doença provoca consequências neurológicas importantes, afetando o sistema nervoso central, causando meningite, encefalite e, em casos extremos, paralisia aguda, levando à morte.
O vírus do Nilo Ocidental foi identificado pela primeira vez em Uganda, em 1937, e em seguida, nos anos 1950, no Egito (daí seu nome). A doença não tinha grande importância epidemiológica. Nos anos 1990, isso mudou. Levado por aves migratórias da África à Europa, o vírus se espalhou da França à Rússia. Em 1999, chegou aos Estados Unidos. Diversos surtos ocorreram desde então. A partir de 1999, foram contabilizados mais de 20 mil casos na América do Norte, com quase 1,8 mil óbitos. Ainda não existe vacina contra o vírus.
“O vírus do Nilo Ocidental ainda não chegou ao Brasil, mas é apenas uma questão de tempo até que isso venha a ocorrer”, alerta o virologista Paolo Zanotto, chefe do Laboratório de Evolução Molecular e Bioinformática do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo.
Daí a importância de uma nova pesquisa que tem Zanotto como um dos autores e cujos resultados acabam de ser publicados. O trabalho sinaliza o desenvolvimento de uma vacina nos próximos anos. Isso se deve à constatação de que a linhagem 8 do vírus, descoberta em 1992, é pouco virulenta e seus efeitos são especialmente brandos.
O artigo foi publicado na revista PLOS Neglected Tropical Diseases e é resultado de uma colaboração entre virologistas do Instituto Pasteur de Dakar, no Senegal, da Universidade de São Paulo e da Universidade Federal de São Carlos. Contou com apoio da FAPESP, do CNPq e de órgãos de financiamento da União Europeia.
São conhecidas nove linhagens do vírus do Nilo Ocidental. O desenvolvimento de uma vacina feita com os vírus brandos da linhagem 8 poderia, em tese, “ensinar” o sistema imunológico a se defender de todas as outras linhagens – em especial as linhagens 1 e 2, que são as mais disseminadas, e a de número 7, a pior de todas.
Trata-se de um estratégia de defesa imunológica semelhante à empregada na vacina da gripe, que mistura as linhagens mais recentes do vírus influenza para combater a gripe do ano, sempre causada por uma cepa recém-evoluída e, portanto, nova, contra a qual não se tem imunidade.
O vírus do Nilo Ocidental já provocou surtos no Canadá (1999-2007), nos Estados Unidos (1999 a 2012) e no México (2003). Ele é transmitido por picadas de mosquitos, que infectam, além de humanos, as aves migratórias.
“Quanto tempo vai levar para que aves migratórias que passam o verão na América do Norte tragam o vírus para os seus refúgios de inverno na América Central? O vírus do Nilo Ocidental está chegando”, disse Zanotto.
O professor e seu aluno de doutoramento Nicholas Di Paola (bolsista da FAPESP) estão entre os autores do trabalho que faz um levantamento das características biológicas e filogenéticas das linhagens do vírus do Nilo Ocidental presentes no Oeste da África.
Os investigadores principais são Di Paola e sua colega senegalesa Gamou Fall. Zanotto divide a responsabilidade científica pelo trabalho com o colega Amadou Alpha Sall, diretor do Instituto de Dakar.
A pesquisa faz parte do trabalho de doutoramento de Di Paola, um nova-iorquino filho de brasileira e norte-americano que, nos últimos quatro anos, divide seu tempo entre São Paulo e o Senegal, onde coletou as amostras do vírus. “Levei um ano e meio para aprender as técnicas necessárias para a coleta e análise do material”, disse Di Paola.
O vírus do Nilo Ocidental pertence à família flavivírus, a mesma dos vírus da hepatite e do Zika. O vírus do Nilo Ocidental infecta um grande espectro de animais. Ele já foi isolado em 65 espécies de mosquitos e carrapatos, assim como em 225 espécies de aves e outras 29 espécies de vertebrados, como cavalos e primatas, entre eles humanos.
“Uma novidade do trabalho foi que pela primeira vez isolamos o vírus da linhagem 7 a partir de carrapatos”, disse Di Paola.
Imunidade contra linhagens perigosas
O estudo consistiu no sequenciamento de três genes isolados em amostras do vírus coletadas na África Ocidental por Di Paola e Fall. Os genes sequenciados são representantes das linhagens mais disseminadas globalmente (linhagem 1), da mais virulenta (7) e da menos virulenta (8).
Uma vez sequenciados, os genes foram comparados com as 862 sequências genéticas do vírus do Nilo Ocidental armazenadas no GenBank – sendo que 770 delas são provenientes da América do Norte, todas da linhagem 1A.
Para reduzir o tempo de processamento computacional, optou-se por excluir as sequências da linhagem 1A, diminuindo o universo de análise a 95 sequências, a partir das quais foi possível estabelecer a análise filogenética do vírus. Entre os resultados descobriu-se duas características importantes das linhagens 7 e 8.
No caso da linhagem 8, a menos virulenta, detectou-se a substituição do gene P122S, o que induz mutações que podem estar relacionadas às baixas taxas de replicação desta linhagem, o que explicaria a sua baixa virulência.
“É por isso que a linhagem 8 é ideal para a eventual produção de uma vacina”, disse Zanotto. Segundo o professor, o desenvolvimento de uma vacina a partir de um vírus com baixíssima virulência teria a capacidade de conferir imunidade contra as linhagens mais perigosas, 1, 2 e 7, sem o risco do desenvolvimento de sintomas da doença.
No caso da linhagem 7, os virologistas brasileiros e senegaleses foram capazes de identificar uma mutação (no gene S653F NS5) que está associada com a resistência aumentada desta linhagem ao interferon, a proteína produzida pelas células brancas do sistema imune e que são responsáveis por interferir na replicação dos patógenos invasores. Tal mutação pode ajudar a explicar a alta virulência da linhagem 7.
“Com exceção de uma única possível infestação acidental, que ocorreu no laboratório na África, a linhagem 7 nunca foi isolada em humanos. Mas nos testes in vivo no laboratório ela foi devastadora entre as cobaias”, disse Zanotto.
A baixa virulência da linhagem 8 e a alta virulência da linhagem 7 foram testadas, comprovadas e aferidas em experimentos tanto in vitro em células infectadas, quanto in vivo, inoculando camundongos no laboratório de Dakar. No caso da linhagem 8, ela mostrou pouca capacidade de replicação in vitro e praticamente nenhuma virulência entre as cobaias.
As equipes de virologistas da USP e do Senegal têm uma história de mais de 20 anos de colaboração científica, estabelecida a partir de estudos em conjunto sobre os vírus da dengue, do famigerado ebola e, mais recentemente, do vírus Zika.
A existência de surtos desses vírus emergentes no Brasil e no Senegal possibilitou ao Instituto de Ciências Biomédicas da USP e ao Instituto Pasteur de Dakar formarem quadros e aprenderem técnicas a ponto de se tornarem duas instituições de ponta no que concerne às pesquisas com arbovírus, os vírus transmitidos por insetos.
Prova disso foi a quantidade e a qualidade dos trabalhos desenvolvidos nos dois institutos durante o auge do surto de Zika em 2015. “Em 2015, o Instituto Pasteur de Dakar e a equipe da USP publicaram uma quantidade de pesquisas relevantes superior àquela feita até mesmo pelos pesquisadores do Centro de Controle de Doenças (CDC) dos Estados Unidos”, disse Zanotto.
O artigo Biological and phylogenetic characteristics of West African lineages of West Nile vírus (doi: https://doi.org/10.1371/journal.pntd.0006078), de Gamou Fall, Nicholas Di Paola, Martin Faye, Moussa Dia, Caio César de Melo Freire, Cheikh Loucoubar, Paolo Marinho de Andrade Zanotto, Ousmane Faye e Amadou Alpha Sall, pode ser lido em: http://journals.plos.org/plosntds/article?id=10.1371/journal.pntd.0006078.
Agência FAPESP