Era o tamanduaí, como seria conhecido popularmente no Brasil, um bichinho encantador, porém esquivo, de hábitos noturnos e que vive na copa das árvores, onde se alimenta exclusivamente de formigas.
O animal é encontrado em florestas tropicais do norte da América do Sul e da América Central e também nas poucas manchas que restam da Mata Atlântica nordestina. Toda as populações de tamanduaí são praticamente idênticas, daí a razão pela qual se acreditou por 259 anos que se tratava de uma única espécie. Agora se sabe que são sete. Pelo menos.
A descrição de seis novas espécies de tamanduaí é resultado do trabalho da veterinária Flávia Miranda, do Laboratório de Biodiversidade e Evolução Molecular da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Miranda faz parte da equipe de taxonomistas, zoólogos e geneticistas da UFMG e da Universidade de São Paulo que estudaram a biologia e a ecologia das novas espécies e sequenciaram o DNA nuclear e o DNA mitocondrial de 287 espécimes.
O resultado está no artigo Taxonomic review of the genus Cyclopes Gray, 1821 (Xenarthra: Pilosa), with the revalidation and description of new species, publicado no Zoological Journal of the Linnean Society. A pesquisa contou com o apoio da FAPESP – Bolsa Estágio de Pesquisa no Exterior e Bolsa de Doutorado –, da Fundação Boticário, do Wildlife Conservation Society, da Fapemig, Capes e do CNPq.
Desde a descrição pioneira de Cyclopes didactyla foram descobertas, no século 19 e início do 20, outras seis populações de tamanduaís com distribuições espalhadas desde o sul do México até o norte da Bolívia e, na direção leste, passando pela Amazônia, Pará e Maranhão, até o Nordeste brasileiro, em Alagoas.
Todos os espécimes coletados eram aparentemente idênticos e não havia diferenciações morfológicas suficientes para sustentar a descrição de espécies distintas. Daí que todas foram consideradas subespécies de C. didactyla, a única espécie da família Cyclopedidae.
Este era o estado do conhecimento até 2005. Foi quando entrou em cena a veterinária Flávia Miranda. Ela trabalha com a ordem Xenarthra há mais de 20 anos e dirige o Projeto Tamanduá, voltado à conservação de preguiças, tamanduás e tatus.
Foi na condição de especialista em xenartros que Miranda participou, em 2005, de uma reunião da União Internacional para Conservação da Natureza, onde se pretendia verificar o status da espécie C. didactyla, com vistas à conservação.
Uma das questões levantadas foi determinar se a população nordestina de tamanduaís ainda existia. Fazia anos que não havia relatos de avistamentos. “Comentei que, em 2000, quando trabalhava no Recife, recebi um exemplar da espécie no criadouro onde eu trabalhava”, disse Miranda à Agência FAPESP. Era o caso de verificar in loco.
Decidida a fazer o reconhecimento das populações de tamanduaís no Nordeste e na Amazônia brasileira, Miranda realizou nos dois anos seguintes trabalhos de campo no Pará, no Maranhão e também nas franjas do rio São Francisco, em Alagoas. Quanto mais avistamentos e coletas ela fazia, maior era a sua convicção que, talvez, se tratasse de espécies distintas.
“Comecei a perceber as diferenças de coloração. Os bichos do Maranhão eram completamente diferentes daqueles da região do Xingu. Seriam da mesma espécie? Será que a aparente semelhança morfológica dos indivíduos das diversas populações de tamanduaís não esconderia diferenças profundas em nível molecular?”, disse.
O advento da biologia molecular tem mostrado aos taxonomistas que nem tudo o que é aparentemente idêntico na realidade o é. Miranda passou os últimos 10 anos organizando e empreendendo expedições a todas as regiões brasileiras onde havia relatos de tamanduaís. Foram 10 expedições: a Santa Isabel do rio Negro no Amazonas, a Oriximiná no Pará, ao delta do Parnaíba no Piauí, ao Maranhão, ao Amapá e ao Suriname, entre outros locais.
Houve ocasiões em que ela ficou até 60 dias embrenhada na mata. “Sem a ajuda da população local, jamais teria conseguido achar todos os espécimes que encontrei”, disse.
“O trabalho de localização dos animais na mata foi sempre muito difícil. Imagine um bichinho de apenas 250 gramas, que vive na copa de grandes árvores em zonas alagadas como igarapés, igapós e mangues, que quase não desce ao solo, não vocaliza em momento algum e só é ativo à noite. Demorei dois anos de campo extensivo até conseguir fazer o primeiro avistamento”, disse.
Relógio molecular
Miranda realizou ao todo 17 coletas no Brasil e Suriname. Uma vez feita a captura, os espécimes eram medidos, fotografados e amostras de sangue coletadas para estudo molecular. Foram registrados o sexo e a localização geográfica. A idade foi determinada a partir da massa corporal, da densidade e do tamanho do pelo. Paralelamente, foram coletados dados morfológicos e morfométricos de 20 coleções de história natural em diversos países.
A análise do DNA mitocondrial e do DNA nuclear dos tamanduaís não deixou dúvidas quanto à existência de diversas espécies para o gênero Cyclopes, suportadas pelas diferenciações morfológicas, morfométricas e pela localização geográfica.
As descobertas mais surpreendentes vieram do relógio molecular, uma técnica de biologia molecular que relaciona o tempo de divergência entre duas espécies com o número de diferenças moleculares em seu DNA.
O relógio molecular revelou que a separação das diversas espécies de tamanduaís não tem nada de recente. Ao contrário, é muito antiga. Os autores estimam que o grupo Cyclopedidae dos tamanduaís divergiu do restante dos tamanduás (que deu origem ao tamanduá-bandeira e ao tamanduá-mirim) no Oligoceno inferior, há 30 milhões de anos.
A evidência molecular sugere que a primeira divergência dentro do gênero Cyclopes se deu há 10,3 milhões de anos, no Mioceno superior. Foi quando se separaram os ancestrais das linhagens encontradas no oeste do Amazonas, no Acre, na Amazônia peruana e em Rondônia.
Tal diversificação estaria ligada à alteração do curso do Amazonas, que corria no sentido leste-oeste, mas inverteu de sentido há cerca de 10 milhões de anos em função da elevação dos Andes. Nesta época se formou um imenso pantanal no oeste da Amazônia.
Há 7 milhões de anos o grande pântano desapareceu, isolando naquela região os ancestrais de duas novas espécies agora descritas, Cyclopes rufus e Cyclopes thomasi. Já essas, eventualmente, se diferenciaram há 3,4 milhões de anos, devido à formação das bacias dos rios Purus e Madeira, que formaram barreiras biogeográficas isolando as duas populações. A espécie boliviana Cyclopes catellus pode ser oriunda dos mesmos eventos.
Há cerca de 5,8 milhões de anos, ocorreu no oeste da Amazônia e no Equador a divergência da linhagem de Cyclopes ida. Há 4,6 milhões de anos, foi a vez do surgimento da linhagem de Cyclopes xinguensis, que permaneceu restrita à área do rio Xingu.
Há 3 milhões de anos, com a contínua elevação da barreira andina, deu-se a separação da linhagem mesoamericana Cyclopes dorsalis de seus parentes na América do Sul.
Já a linhagem de Cyclopes didactylus, a espécie original descrita por Lineu, que habita a margem esquerda do rio Amazonas (e a bacia do Negro), o Amapá, o Pará, o Maranhão até Alagoas (além da Venezuela e de Suriname), divergiu há cerca de 2,3 milhões de anos, com o advento das primeiras glaciações do período Pleistoceno.
Os pesquisadores pretendem avaliar o estado de conservação da população de tamanduaí no Nordeste, ameaçada especialmente pelo desmatamento. “A ideia é classificar a população do Nordeste como Unidades Evolutivas significativas (UEs)”, disse Miranda.
Tantos milhões de anos de separação entre as espécies de tamanduaís seriam mais do que suficientes para que elas acumulassem diversas modificações. Mas não foi o que ocorreu. Ao longo de sua história evolutiva, o gênero Cyclopes se mostrou extremamente conservador, ou seja, ele vem se modificando morfologicamente muito pouco ou quase nada desde então.
“A razão para isso pode estar nos hábitos de vida destes animais, que ocupam um nicho ecológico muito especializado e similar entre as espécies, onde não enfrentam concorrentes”, disse a pesquisadora.
Morfometria geométrica
Se as evidências moleculares são definitivas para a nomeação de novas espécies, o levantamento de dados morfológicos e ecológicos é importante para corroborar as descrições.
“Historicamente, este grupo sempre foi considerado monoespecífico”, explica Fabio de Andrade Machado, ex-bolsista da FAPESP atualmente no Museo Argentino de Ciencias Naturales Bernardino Rivadavia, em Buenos Aires.
Machado é um zoólogo especialista na análise das características morfométricas que diferenciam espécies. Na pesquisa, ele auxiliou na diagnose das diferenças morfométricas a fim de encontrar evidências que corroborassem a descrição das novas espécies.
“A técnica que usei é chamada morfometria geométrica. É baseada na análise multivariada de conjuntos de pontos, ou marcos anatômicos, que são usados para mapear a forma de estruturas biológicas. Esse tipo de técnica permite a investigação da estrutura do crânio como um todo e nos dá diferenças gerais na forma entre diferentes espécies”, disse.
De acordo com Machado, as análises permitiram diagnosticar que a principal diferença nas espécies estudadas era referente ao táxon mesoamericano (C. dorsalis), que apresenta a região do rostro reduzida em relação aos outros grupos sul-americanos.
Outra conclusão é que animais do Nordeste brasileiro, da Guiana (C. didactylus) e do Xingu (C. xinguensis) apresentam o crânio mais grácil e menos robusto do que as demais espécies. “Apesar de não detectar um diagnóstico preciso, como no caso de C. dorsalis, isso sugere que esse gênero apresenta mais de uma ou de duas espécies”, disse Machado.
O artigo Taxonomic review of the genus Cyclopes Gray, 1821 (Xenarthra: Pilosa), with the revalidation and description of new species (doi: 10.1093/zoolinnean/zlx079), de Flávia R. Miranda, Daniel M. Casali, Fernando A. Perini, Fabio A. Machado e Fabrício R. Santos, está publicado em: https://doi.org/10.1093/zoolinnean/zlx079.
Agência FAPESP