Apoiado pela FAPESP, esse é o primeiro trabalho a indicar que, em seres humanos, uma infecção prévia por dengue não leva necessariamente a um quadro mais grave de Zika. Estudos anteriores, realizados apenas com células e com roedores, sugeriam que ter tido uma infecção por dengue potencializaria o agravamento da Zika por facilitar a multiplicação do vírus. Alguns médicos e virologistas suspeitavam que essa possível amplificação viral pudesse explicar a concentração de casos de microcefalia associada à Zika registrada no Nordeste brasileiro, onde a prevalência de dengue é mais elevada do que em outras regiões do país.
“Nossos resultados indicam que esse agravamento não ocorre ou, se ocorrer, é muito raro e não pôde ser detectado em um estudo como esse”, conta o virologista Maurício Lacerda Nogueira, professor da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (Famerp) e coordenador da pesquisa. O estudo foi realizado em parceria com pesquisadores de duas instituições norte-americanas e outras três paulistas – a Universidade Estadual Paulista (Unesp), a Universidade de São Paulo (USP) e o Instituto Butantan.
Durante o período mais intenso da epidemia de Zika, entre janeiro e julho de 2016, a equipe de Nogueira coletou amostras de sangue de 65 pessoas com febre e sintomas de dengue ou Zika – eles são semelhantes e se confundem – atendidas em um pronto-socorro de referência da cidade de São José do Rio Preto, um polo de saúde nas regiões norte e no noroeste de São Paulo. A análise do material genético viral encontrado no sangue revelou que 45 apresentavam uma infecção por Zika e 20 por dengue. Os testes indicaram ainda que 78% daquelas com Zika (35 pessoas) e 70% das com dengue já haviam sido infectadas anteriormente pelo vírus da dengue.
Pouco depois que a epidemia de Zika emergiu, começou-se a suspeitar que a infecção prévia por dengue pudesse gerar quadros mais graves de Zika, semelhantes aos que ocorrem na dengue hemorrágica. Cerca de 90% dos casos de dengue hemorrágica – marcada por sangramentos e, quando mais severa, por queda importante de pressão arterial – ocorrem em pessoas que já haviam tido a doença e são infectadas por um subtipo diferente do vírus (ao todo são quatro os subtipos). O problema é que os anticorpos produzidos pelo sistema imune contra um dos subtipos nem sempre neutraliza o outro de modo eficiente, gerando uma imunização parcial.
Segundo uma hipótese chamada incremento dependente de anticorpos (ADE), a imunização incompleta parece facilitar a entrada do vírus nas células do sistema de defesa em que ele consegue se reproduzir, aumentando o número de suas cópias no organismo e a gravidade da infecção. Como os vírus da dengue e da febre Zika são muito semelhantes (integram a família dos flavivírus), imaginava-se que a imunização parcial observada após a infecção por dengue também pudesse ocorrer quando alguém que já teve dengue contrai Zika.
Essa suspeita ganhou força em meados de 2016 quando surgiram os primeiros estudos mostrando que os anticorpos que protegem da dengue também atuam contra o vírus Zika, mas não os neutralizam completamente. Em março deste ano, pesquisadores dos Estados Unidos verificaram que essa imunização parcial aumentava a multiplicação do Zika em um estudo feito com camundongos com o sistema imune debilitado. Agora, os resultados apresentados na Clinical Infectious Diseases sugerem que o que se passa com células in vitro e com roedores não necessariamente ocorre com os seres humanos.
Com o auxílio do imunologista Jorge Kalil Filho, da USP, Nogueira e sua equipe examinaram a quantidade de cópias do Zika no sangue de pessoas infectadas anteriormente com dengue e compararam com a encontrada no sangue daquelas jamais expostas ao vírus da dengue. Se a infecção prévia por dengue facilitasse a multiplicação do Zika, a quantidade de vírus Zika deveria ser bem mais elevada no organismo do primeiro grupo de pacientes. Não foi o que observaram: a concentração de vírus foi semelhante nos dois grupos. “Nosso estudo tinha poder estatístico suficiente para detectar uma diferença muito pequena, de apenas 10 vezes, na concentração do vírus”, conta Nogueira. Se o incremento mediado por anticorpos ocorresse nessa situação, seria esperado que a concentração fosse dezenas de milhares de vezes maior.
“Esses resultados não excluem totalmente a possibilidade de que a ADE ocorra, mas são uma evidência importante de que ter tido dengue não leva a uma infecção mais severa por Zika”, conta Kalil, coautor da pesquisa. “Na realidade, há relatos não publicados de que pessoas que já tiveram dengue apresentaram uma forma mais branda de infecção ao contrair Zika.”
“Se o incremento mediado por anticorpos causado pela dengue levasse à microcefalia, deveríamos ter identificado centenas de casos em São José do Rio Preto e em Ribeirão Preto”, explica Nogueira. “Não detectamos nenhum.” A equipe do virologista também acompanhou em Rio Preto 55 mulheres que tiveram Zika durante a gestação. Todas deram à luz filhos sem microcefalia – algumas das crianças apresentaram danos neurológicos, mas bem mais leves do que os registrados no Nordeste.
“Sem dúvida, esse artigo [da Clinical Infectious Diseases] tem implicações de longo alcance, tanto epidemiológicas quanto para o desenvolvimento de vacinas”, afirma o pesquisador Nikos Vasilakis, da Universidade do Texas, coautor do estudo. “Esses dados sugerem que outros fatores podem ser os responsáveis pela síndrome congênita do Zika.”
As primeiras evidências de que a infecção prévia por dengue levaria a uma Zika mais severa levantaram uma preocupação com respeito ao desenvolvimento de vacinas, em especial a vacina da dengue, em teste no Brasil. “Houve o temor de que vacinar a população contra a dengue pudesse levar a casos mais severos de Zika”, conta Kalil. “Os resultados que obtivemos agora indicam que esse problema não deve existir.”
O artigo Viral load and cytokine response profile does not support antibody-dependent enhancement in dengue-primed Zika-infected patients, publicado na Clinical Infectious Diseases, por ser lido em https://academic.oup.com/cid/article-abstract/doi/10.1093/cid/cix558/3872368/Viral-load-and-cytokine-response-profile-does-not.
Revista Pesquisa FAPESP