Na década de 1980, foi criado um instrumento que possibilitou investigar e medir o atrito na escala do átomo: o microscópio de força atômica (atomic force microscope – AFM). Por meio de uma ponta de diamante, capaz de aplicar uma pressão extremamente baixa sobre a superfície a ser estudada, o AFM permite rastrear em profundidade a estrutura dessa superfície. Outro instrumento que viabilizou medidas em escalas mesoscópicas e nanoscópicas foi o nanoindentador. Dispõe de uma ponta de diamante que pode deslizar sobre o substrato a ser estudado, tendo a pressão aplicada e a velocidade de deslocamento controladas por dispositivos elétricos e magnéticos, e a força tangencial, devido à fricção, continuamente registrada.
Usando este último instrumento, um grupo de pesquisadores de três universidades brasileiras (Universidade de Caxias do Sul, UCS; Universidade Estadual de Campinas, Unicamp; e Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, PUC-RJ) determinou agora a participação da dissipação fônica – isto é, das vibrações que se propagam na rede cristalina do material – no fenômeno do atrito. O estudo resultou no artigo “On the phonon dissipation contribution to nanoscale friction by direct contact”, publicado na revista Scientific Reports, do grupo Nature.
A iniciativa do estudo partiu de Carlos Alejandro Figueroa, da Universidade de Caxias de Sul, que dispõe do equipamento adequado e mobilizou seus colegas Fernando Alvarez, da Unicamp, orientador do doutorado e o supervisor da pesquisa de pós-doutorado de Figueroa, além de Fernando Lázaro Freire Jr., da PUC-RJ, ambos experientes na fabricação de filmes finos baseados em carbono e em sua posterior caracterização físico-química.
O esforço teve o apoio da FAPESP por meio do projeto temático “Pesquisa e desenvolvimento de materiais nanoestruturados para aplicações eletrônicas e de física de superfícies”, coordenado por Fernando Alvarez.
“Quando se desce ao nível atômico, é preciso levar em conta as forças elétricas, magnéticas e de contato entre os átomos. Mas existe também um outro mecanismo importante de dissipação de energia, constituído pelos fônons. O deslizamento de uma superfície sobre outra produz vibrações nas moléculas que compõem os materiais. E são essas vibrações, que podem se propagar nas estruturas cristalinas, que chamamos de ‘fônons’. Foi esse fenômeno específico que enfocamos em nosso estudo”, disse Alvarez à Agência FAPESP.
Um fônon é uma excitação mecânica que se propaga pela rede cristalina do sólido. Em física clássica, pode ser descrito como uma onda elástica. Mas, considerando que o fenômeno ocorre em escala atômica, é preciso utilizar a física quântica. E, neste caso, o fônon dever ser pensado como um quantum de energia que viaja pela rede.
“Nosso primeiro desafio foi isolar esse fator de outros que ocorrem na mesma escala – isto é, das interações elétricas, magnéticas e de contato –, para determinar sua contribuição específica ao fenômeno do atrito. Pensamos, então, em comparar materiais que apresentassem as mesmas propriedades elétricas e magnéticas e de contato, e só se diferenciassem pelas propriedades fônicas”, afirmou o pesquisador.
Para isso, os estudiosos depositaram, sobre um substrato de silício cristalino, uma camada de espessura nanométrica de carbono amorfo semelhante ao diamante (DLC, sigla derivada da expressão inglesa diamond-like amorphous carbono). Trata-se de um material extremamente duro, bastante inerte e com baixo coeficiente de atrito, que já vinha sendo utilizado, como película protetora, em mecanismos macroscópicos e nanoscópicos, especialmente nas engrenagens de motores de alta eficiência, como os de Fórmula 1. A grande novidade foi que substituíram, parcial ou totalmente, os hidrogênios do DLC por deutério.
Como se sabe, o hidrogênio é composto por apenas um próton (no núcleo) e um elétron (na camada envolvente). O deutério é um isótopo do hidrogênio que, além do próton, tem também um nêutron no núcleo. Assim, o deutério é idêntico ao hidrogênio comum do ponto de vista químico, pois as propriedades químicas dependem apenas da camada eletrônica envolvente – igual para os dois isótopos. Também é idêntico do ponto de vista elétrico e magnético, pois essas propriedades dependem da carga. Mas possui aproximadamente o dobro da massa, devido ao acréscimo do nêutron.
“Por ter o dobro da massa, o deutério, ligado a um átomo pesado como o do carbono, quando recebe um impulso, vibra com menor frequência que o hidrogênio. Mais precisamente, as frequências de vibração dos dois isótopos são inversamente proporcionais à raiz quadrada das respectivas massas”, informaram os coordenadores do estudo.
Utilizando o nanoindentador, os pesquisadores calcularam a força necessária para arrastar a ponta de diamante do equipamento sobre camadas de carbono amorfo semelhante ao diamante (DLC) com diferentes composições atômicas: apenas carbono e hidrogênio (C-H); carbono e hidrogênio (C-H) e carbono e deutério (C-D); apenas carbono e deutério (C-D). “Comprovamos que a força de fricção decresce claramente à medida que cresce a porcentagem de deutério na composição. E o único fator responsável por esse decréscimo da força é o aumento da massa, e, portanto, a diminuição da frequência vibratória do material”, explicaram.
Com esse experimento, de concepção simples, mas de execução sofisticada, os estudiosos conseguiram isolar as interações fônicas das interações elétricas, magnéticas e de contato. E calcular a contribuição específica das interações fônicas para o fenômeno do atrito. “Fizemos um ajuste teórico dos modelos possíveis de excitações de fônons, e os resultados obtidos convergiram com a distribuição randômica de átomos de deutério em uma matriz de carbono amorfo”, comentou Alvarez.
O experimento sugere uma aplicação tecnológica óbvia: introduzir deutério na liga, para melhorar as propriedades do DLC, como recobrimento capaz de diminuir o desgaste de peças e aumentar a eficiência de mecanismos deslizantes. O problema é o custo.
O deutério existe na natureza, principalmente nas moléculas de água pesada, formadas por um átomo de oxigênio e dois átomos de deutério (D2O). E a água pesada pode ser encontrada, entre outros locais, nos lagos de montanhas. Devido à sua capacidade de frear a velocidade dos nêutrons, é utilizada como substância moderadora em alguns tipos de reatores nucleares. É também empregada em tanques subterrâneos destinados à captura de neutrinos. Porém, a quantidade disponível é extremamente baixa: a água comum contém pouco mais de 150 átomos de deutério por milhão de átomos de hidrogênio. Daí decorre o fato de o custo ser um fator limitante para o emprego do material em larga escala.
“Mas, se considerarmos dispositivos nanométricos, que demandam uma quantidade mínima de material, o uso do deutério em películas protetoras não deve ser descartado”, ponderou Alvarez. “Além disso, existem ideias alternativas, como a introdução de outros elementos, que poderiam, pelo mesmo princípio, diminuir o atrito do sistema a custos razoáveis", acrescentou.
O fenômeno do atrito remete imediatamente à dissipação de energia na forma de calor – ou melhor, à conversão de energia mecânica em energia térmica. Um exemplo trivial é o hábito de esfregar as mãos em época de frio. As mãos esquentam devido ao atrito entre elas: a energia mecânica da fricção transforma-se em energia térmica. E essa transformação, no caso, é muito positiva. Por outro lado, quando se trata de máquinas, motores etc., a dissipação de energia na forma de calor significa perda de eficiência. É a outra face da moeda. “Estudos realizados nos Estados Unidos estimam que o prejuízo econômico decorrente da dissipação de energia por atrito alcança naquele país o patamar de US$ 200 bilhões por ano. Daí o interesse em ir além dos lubrificantes. E o deutério sugere um novo horizonte tecnológico”, sublinhou o pesquisador.
Além dos três coordenadores, participaram da pesquisa: Saron Sales de Mello (UCS), Marcelo Maia da Costa (PUC-RJ), Caren Machado Menezes (UCS) e Carla Daniela Boeira (UCS).
Agência FAPESP