Mutações que não haviam sido registradas anteriormente na literatura científica mundial. Os resultados dessas análises foram comunicados pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) ao Departamento de Vigilância das Doenças Transmissíveis do Ministério da Saúde e divulgados em artigo na revista científica Memórias do Instituto Oswaldo Cruz.
Como explicam os pesquisadores, ainda será preciso analisar um maior número de amostras, com origem em diferentes locais e incluindo casos em humanos, macacos e mosquitos, para avaliar os impactos para a saúde pública. Adicionalmente, dados ainda não publicados apontam os mesmos resultados para a análise de mosquitos coletados no Espírito Santo e para amostras colhidas de um macaco morto no estado do Rio de Janeiro.
Como constataram os pesquisadores do Laboratório de Biologia Molecular de Flavivírus e do Laboratório de Mosquitos Transmissores de Hematozoários do IOC, o surto atual é o mais severo das últimas décadas, a doença tem se espalhado de forma rápida, com epizootias e casos humanos diagnosticados inclusive em locais considerados livres do agravo há quase 70 anos. Isso levou os cientistas a se perguntarem: existe algo de diferente no vírus da febre amarela que está circulando atualmente? E a se empenharem nas pesquisas sobre a atual situação da doença e sua dinâmica de dispersão.
Os coordenadores do estudo, a pesquisadora Myrna Bonaldo, chefe do Laboratório de Biologia Molecular de Flavivírus do IOC, e o pesquisador Ricardo Lourenço, chefe do Laboratório de Mosquitos Transmissores de Hematozoários do IOC, integram ambos a Sala de Situação para Febre Amarela Silvestre criada pela presidência da Fiocruz. Para estudar o risco de transmissão e de re-emergência do ciclo urbano da febre amarela, a Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde (SVS) e o Laboratório de Mosquitos Transmissores de Hematozoários vem atuando conjuntamente na coleta de amostras de primatas e mosquitos em locais estratégicos.
A coleta, pelo grupo, de amostras de sangue, de dois macacos bugios (da espécie Alouatta clamitans) que adoeceram, em fevereiro, em uma mata no Espírito Santo, não só confirmou a infecção pelo vírus, como significou a obtenção de material genético para o sequenciamento do genoma. “Como são particularmente suscetíveis ao vírus e estão entre os primeiros a morrer quando afetados pela doença, os bugios são extremamente importantes em nossas pesquisas. São considerados os ‘sentinelas’ da febre amarela”, explica Ricardo, que é veterinário e entomologista. Ele acrescenta ainda que esses animais “amplificam eficientemente o vírus em seu organismo, favorecendo a infecção de mosquitos que habitam as matas e a disseminação da transmissão silvestre, na qual os seres humanos são infectados acidentalmente. Por isso, sua morte dispara um alerta para a possível presença do vírus em uma localidade”.
Para o estudante de pós-graduação em Biologia Parasitária do IOC, Filipe Abreu, integrar a equipe de coleta de amostras liderada por Ricardo tem sido uma oportunidade imensa de aprendizado. “Como há décadas não se registrava febre amarela na Mata Atlântica, pensei que não veria suas consequências na prática. Foi um enorme aprendizado ter a oportunidade de visualizar e trabalhar, em campo, com objeto de estudo da minha tese", comenta o biólogo.
Análise do genoma do vírus
O processo de sequenciamento completo do genoma foi feito depois da extração do material genético (RNA) das amostras. Para isso, a equipe contou com o apoio da Plataforma Tecnológica de Sequenciamento de DNA do IOC. Surgiram daí três principais evidências. Na primeira, observou-se 100% de identidade entre as sequências genéticas dos vírus presentes nos animais; ou seja: os vírus tinham sequências genéticas idênticas. A segunda foi a constatação de modificações no código genético dos vírus. Essas mutações foram detectadas ao se comparar a sequência genética completa obtida com a sequência genética completa dos vírus relacionados a surtos ocorridos desde a década de 1980 no Brasil e na Venezuela, onde a linhagem Sul Americana 1E também é predominante. Isso foi feito utilizando-se bancos de dados internacionais dedicados ao depósito de sequências genéticas. “As modificações que observamos são inéditas, não estão descritas em achados anteriores”, detalha a coordenadora Myrna.
A terceira evidência foi observada na análise das proteínas virais, na etapa seguinte à constatação de mudanças na sequência genética. “De forma simplificada, o genoma é um código responsável por orientar a produção de proteínas. Essas proteínas são a base da própria estrutura do vírus, formando seus elementos constitutivos, como suas paredes, por exemplo. Podemos comparar o genoma a um roteiro: o vírus tem um repertório de proteínas que são fabricadas a partir da informação do genoma. Algumas mudanças genéticas não impactam suas proteínas. Por isso, é importante observar se as variações genéticas poderiam modificar o repertório das proteínas fabricadas”, descreve Myrna, virologista molecular e especialista em flavivírus, grupo dos vírus da dengue, zika e febre amarela.
Detectou-se que as mudanças no genoma relacionavam-se a oito substituições de aminoácidos (as moléculas que compõem as proteínas). Sete dessas substituições ocorreram nas duas proteínas mais importantes para a replicação viral, conhecidas como NS3 e NS5. “É o processo de replicação do vírus que garante que o microrganismo provoque a doença. Além do impacto sobre as proteínas relacionadas à replicação viral, também observamos uma modificação na proteína C, que forma o capsídeo, o envoltório que protege o material genético no interior do vírus”, esclarene a coordenadora. Myrna frisa que as implicações biológicas e epidemiológicas desses achados ainda dependem de novos estudos e que há necessidade de mais dados para se esclarecer o eventual papel dessas alterações genéticas detectadas no contexto do atual surto da doença.
“Temos algo que não tinha sido observado antes, porém ainda não sabemos quais são os impactos dessas mutações. O que é motivo para imprimirmos velocidade à divulgação desses achados, para que as diversas equipes de pesquisadores que se debruçam sobre o estudo da febre amarela no País considerem esses aspectos em suas análises. A ciência se faz de forma colaborativa, com resultados que vão se somando”, avalia.
Para os pesquisadores, é fundamental que seja feito o sequenciamento do genoma de mais patógenos circulantes no surto atual, tanto em casos humanos, como em mosquitos e em macacos infectados, para, desse modo, complementar as evidências obtidas na pesquisa. “Este é um resultado inicial. Não podemos generalizar, pois ainda não sabemos se esse vírus é predominante no atual surto”, afirma Ricardo Lourenço. Ele considera que, “como há um número limitado de sequências genéticas completas de vírus da febre amarela das Américas depositados nos bancos de genomas internacionais, não descartamos a hipótese de que esta alteração genética seja mais antiga, e que o vírus com esta característica esteja circulando há mais tempo e não tenha sido identificado antes”.
Os pesquisadores frisam ainda que a vacina disponível atualmente protege contra genótipos diferentes do vírus, incluindo o sul-americano e o africano. “Além disso, as alterações detectadas no estudo não afetam as proteínas do envelope do vírus, que são centrais para o funcionamento da vacina.” Para possibilitar a colaboração entre diferentes equipes, as sequências genéticas completas dos vírus analisados no estudo já foram publicadas no GenBank. Assim, estarão disponíveis para comparações por outros cientistas do Brasil e do mundo.
Por Ascom Faperj com informações da Assessoria de Comunicação Social do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz)