De acordo com o modelo cosmológico padrão, a duração do plasma de quarks e glúons no universo primordial não excedeu um milionésimo de segundo, pois cerca de 10-6 s após o Big Bang o universo já teria se resfriado ao ponto de os quarks e glúons não poderem mais se deslocar livremente e serem encapsulados nos hádrons (prótons, nêutrons, mésons etc.). Nas colisões nucleares de alta energia do LHC e do RHIC, devido aos elevados gradientes de pressão, o plasma de quarks e glúons dura ainda menos tempo, aproximadamente 10-23s. Mas, apesar de ser tão efêmero e de ocupar um volume exíguo, pouco maior do que o do próton [o diâmetro do próton é da ordem de grandeza de 10-15 metro], o plasma de quarks e glúons apresenta uma intensa e complexa atividade interior.
Essa atividade vem sendo pouco a pouco desvendada nos experimentos do LHC e do RHIC. E novos aportes teóricos têm sido elaborados para explicar ou prever resultados experimentais. É o caso, entre outros, do estudo “Hydrodynamic Predictions for Mixed Harmonic Correlations in 200 GeV Au+Au Collisions”, publicado no início de março de 2017 em Physical Review C e escolhido como highlight pelos editores. O texto integral do artigo também pode ser lido no portal arXiv.org, da Cornell University.
O estudo foi realizado por Fernando Gardim, do Instituto de Ciência e Tecnologia da Universidade Federal de Alfenas, Frédérique Grassi, do Instituto de Física, Universidade de São Paulo (USP), Matthew Luzum, do Instituto de Física da USP e Jacquelyn Noronha-Hostler do Department of Physics da University of Houston. E apoiado pela FAPESP por meio dos projetos “Extraindo propriedades do plasma de quarks e glúons dos dados do RHIC e LHC” e “Desenvolvimento de um código de hidrodinâmica 3+1 para estudos do plasma de quarks e glúons”.
“Por durar muito pouco tempo, o plasma de quarks e glúons não pode ser observado diretamente. O que os experimentos conseguem detectar são os hádrons formados quando os quarks e glúons voltam a se aglutinar. Esses hádrons se propagam em várias direções e a sua distribuição angular ao redor do eixo da colisão fornece informações muito relevantes sobre a estrutura e a dinâmica do plasma – e, por decorrência, sobre a natureza das interações fundamentais da matéria. Nosso trabalho, de viés teórico, foi prever padrões específicos na distribuição angular dos hádrons”, disse Frédérique Grassi à Agência FAPESP.
Para isso, os pesquisadores utilizaram um modelo hidrodinâmico, denominado NeXSPheRIO, que reproduziu de maneira acurada uma ampla gama de dados já obtidas experimentalmente no RHIC. As simulações computacionais realizadas a partir daí permitiram fazer previsões que poderão ser testadas em novos experimentos, possibilitando validar ou corrigir o modelo.
“A distribuição angular observada nos experimentos é decomposta em termos – precisamente em uma sequência conhecida, em linguagem matemática, como série de Fourier. Cada termo da série corresponde a uma característica específica da distribuição. E a série inteira permite saber quantas partículas se deslocam conforme cada padrão. A expressão mixed harmonic correlations [correlações harmônicas misturadas], que aparece no título do trabalho, é a forma técnica de nomear essa relação entre diferentes coeficientes de Fourier”, explicou Grassi.
“Se o plasma de quarks e glúons fosse rigorosamente homogêneo e tivesse a natureza de um gás [isto é, se suas partículas interagissem muito pouco umas com as outras], o fluxo de hádrons resultantes seria isotrópico [ou seja, igual em todas as direções]. Não é isso que acontece porém. Os fluxos reais, detectados experimentalmente, são anisotrópicos e a distribuição angular exibe coeficientes de Fourier não nulos – o que informa sobre a ausência de homogeneidades no plasma e sobre a forte interação entre suas partículas constituintes”, prosseguiu a pesquisadora.
De acordo com suas características geométricas, os coeficientes da distribuição são classificados como elíptico, triangular, quadrangular, pentagonal etc. Entre todos, predomina o fluxo elíptico, porque o jato de hádrons é muito maior em uma das direções ortogonais ao eixo da colisão. Tal distribuição, que decorre da forte interação entre os quarks e os glúons, indica que o plasma possui a natureza de um líquido e não de um gás. Mas não se trata de um líquido qualquer. Pois o fato de o fluxo elíptico não ser atenuado mostra que a viscosidade desse líquido é extremamente baixa. De fato, o plasma de quarks e glúons é o líquido menos viscoso, ou mais perfeito, que já foi descoberto.
“Essa natureza de líquido quase perfeito do plasma de quarks e glúons já havia sido demonstrada em trabalhos anteriores. O que nosso estudo acrescentou foi um maior entendimento acerca da não homogeneidade da distribuição de energia no interior do plasma”, sublinhou Grassi. No curtíssimo tempo de sua duração e no diminuto espaço de sua extensão, o plasma de quarks e glúons apresenta uma intensa dinâmica. Flutuações fazem com que a densidade de energia varie de uma região para outra. O estudo em pauta acena com uma maior compreensão da ligação entre essa dinâmica e as flutuações.
“Como o NeXSPheRIO mostrou até agora um grande acordo com todas as observações já realizadas no RHIC, acreditamos que suas previsões poderão ser utilizadas como termos de comparação para novas medições que venham a ser feitas no colisor norte-americano. Qualquer desvio em relação a essas previsões irá fornecer informações valiosas e não triviais seja sobre a fase inicial da colisão que dá origem ao plasma, seja sobre as propriedades intrínsecas desse meio”, finalizou a pesquisadora.
Agência FAPESP