Trata-se de enzimas que permitem a digestão de alimentos ricos em gordura insaturada. É o que ocorre com os inuítes no Canadá e na Groenlândia, aptos a consumir uma dieta rica em lipídios, como carne de foca.
Esta adaptação genética entre os inuítes foi descoberta por uma equipe internacional em 2015. Após ler o artigo publicado sobre o estudo, Tábita Hünemeier, docente no Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo, resolveu investigar se a mesma adaptação não estaria presente nos genes dos nativos americanos.
Hünemeier e colaboradores acabam de confirmar que o sinal positivo para a adaptação ao consumo de lipídios está presente em populações de índios das Américas. O estudo, cujos resultados foram publicados na revista Proceedings of the National Academy of Sciences, teve apoio da FAPESP.
“Quando li o artigo sobre a adaptação dos inuítes à dieta de lipídios não estranhei a ocorrência da adaptação genética, mas o fato de ela ter ocorrido entre os inuítes. Em termos evolutivos, os inuítes são uma população muito recente. Estão na Groenlândia e no Canadá há apenas 6 mil anos. É pouco tempo para permitir que uma adaptação genética tenha criado variabilidade própria dentro da população”, disse Hünemeier.
Os inuítes, ou esquimós, são descendentes de uma segunda leva migratória humana para as Américas, que ocorreu há 6 mil anos e ficou restrita ao Ártico. Partindo da comparação genética entre populações, os autores do trabalho com o DNA inuíte encontraram o sinal positivo para a adaptação ao consumo de lipídios em genes do cromossomo 11.
“Os autores compararam o genoma inuíte apenas com o DNA de chineses e europeus. Eles desconsideraram os nativos americanos”, disse Hünemeier.
Por conta disso, a pesquisadora decidiu vasculhar genomas de populações nativas americanas e do resto do mundo à procura do sinal positivo que apontasse para a adaptação ao consumo de lipídios. A geneticista contou com a ajuda de dois pós-doutorandos, Carlos Eduardo Amorim e Kelly Nunes, bolsista da FAPESP.
Nunes explica a técnica empregada na análise. “Primeiramente, comparamos o genoma de nativos americanos com os genomas de africanos, europeus e asiáticos para verificar quais seriam os alelos que tinham alta frequência nas populações indígenas americanas e frequências baixas no resto do mundo”, disse.
Os pesquisadores encontraram três variações na sequência do DNA dos nativos americanos, os chamados SNPs (pronuncia-se “snips”, de “polimorfismo de nucleotídeo único”, em inglês).
“Achamos três SNPs significativos, dois no cromossomo 11 e outro no cromossomo 22”, disse Nunes. O passo seguinte foi verificar se aquelas variações estariam ligadas ao sinal positivo para a dessaturação de lipídios. O resultado apontou para dois SNPs do cromossomo 11 dos nativos americanos, localizados no mesmo ponto onde havia sido detectado o sinal positivo para a dessaturação de lipídios no genoma dos inuítes.
“São duas mutações, relacionadas com problemas metabólicos de frequência muito alta entre os nativos americanos e baixa no resto do mundo”, explicou Hünemeier.
Como os nativos americanos e os inuítes possuem o mesmo sinal positivo, decorre daí a constatação de que ambos descendem da mesma população ancestral que teria vivido na Beríngia – porção de terra firme que juntou o Alasca e a Sibéria durante as glaciações, também conhecida como Ponte Terrestre de Bering.
Sinal positivo
Restava saber se o sinal havia aparecido no genoma nativo americano por seleção neutra, ou seja, movido por processos genéticos aleatórios, ou se era resultado de seleção natural, em que indivíduos com a mutação genética que lhes permitia consumir carnes gordurosas obtiveram uma vantagem adaptativa em relação aos demais.
“Todas as evidências apontam para um evento de seleção natural”, disse Hünemeier. Segundo ela, uma pressão seletiva na Beríngia deve ter feito com que os indivíduos com o gene para processar lipídios deixassem mais descendentes do que aqueles sem a mutação.
“O sinal é muito forte para ter se originado num evento de seleção neutra. Nosso estudo indicou que se tratava de um sinal seletivo”, disse Nunes.
A indicação de que a pressão adaptativa para o consumo de carnes gordurosas foi uma adaptação que se deu na Beríngia está no fato de que o sinal positivo para o consumo de lipídios não ter sido encontrado na investigação do DNA fóssil de um siberiano, morto há 20 mil anos.
A Arqueologia e a Paleoantropologia têm tentado decifrar qual a origem dos primeiros seres humanos que entraram nas Américas desde a década de 1930, quando foram descobertos os artefatos do povo de Clóvis nos sudoeste dos Estados Unidos.
Desde então, foram feitas muitas descobertas que levaram a um tanto de hipóteses – e a novas dúvidas. Com o advento da biologia molecular, hoje se estima que paleoíndios permaneceram confinados na Beríngia por cerca de 5 mil anos, uma vez que o Canadá estava coberto por geleiras que barravam o avanço dos imigrantes na direção Sul.
De acordo com Hünemeier, a maioria dos estudos sobre o povoamento das Américas concorda que a diferenciação genética de populações nativas americanas atuais provavelmente ocorreu durante a permanência forçada na Beríngia, onde migrantes de diferentes regiões da Ásia chegaram há cerca de 23 mil anos, habitando o local durante 5 mil a 8 mil anos.
Assim, os ancestrais dos índios americanos tiveram tempo para se adaptar ao novo continente, antes que as geleiras começassem a derreter, um processo iniciado há 15 mil anos. Foi quando se abriu um corredor terrestre entre as geleiras canadenses que permitiu o povoamento do restante das Américas. Com o fim da era do Gelo e a elevação do nível dos mares, a Beríngia desapareceu há 12 mil anos.
O artigo Genetic signature of natural selection in first Americans (doi: 10.1073/pnas.1620541114), de Carlos Eduardo G. Amorim, Kelly Nunes, Diogo Meyer, David Comas, Maria Cátira Bortolini, Francisco Mauro Salzano e Tábita Hünemeier, está publicado em: www.pnas.org/content/early/2017/02/07/1620541114.short?rss=1 .
Agência FAPESP