Orbitando a Terra cerca de 360 quilômetros acima da superfície, o AMS-02 já registrou até o momento mais de 90 bilhões de eventos de raios cósmicos.
Pesquisadores de 56 instituições de 16 países participam do experimento que tem à frente o Departamento de Energia dos Estados Unidos. Faz parte da equipe a física Manuela Vecchi, professora do Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo (IFSC- USP), que conta com o apoio da FAPESP.
“Nestes cinco primeiros anos de observação, publicamos vários artigos na Physical Review Letters. Entre eles, Antiproton Flux, Antiproton-to-Proton Flux Ratio, and Properties of Elementary Particle Fluxes in Primary Cosmic Rays Measured with the Alpha Magnetic Spectrometer on the International Space Station, em agosto de 2016. A abundância e a precisão dos dados obtidos pelo AMS-02 estão desafiando os modelos convencionais sobre a origem e propagação dos raios cósmicos”, disse Vecchi à Agência FAPESP.
Na colossal quantidade de eventos registrados pelo equipamento – constituídos por partículas produzidas fora do Sistema Solar e que se propagam no espaço com velocidades próximas à da luz –, de especial interesse foi a detecção de antimatéria: antielétrons (pósitrons) e antiprótons.
“Trata-se de uma fração muito pequena da radiação cósmica, da ordem de uma para cada 10 mil partículas. Detectar essas antipartículas é um grande desafio, pois o fundo de prótons é enorme e domina os registros. Mas, combinando diferentes técnicas de detecção, o AMS-02 consegue medi-las com admirável precisão. E isso é fascinante, porque as antipartículas são ‘janelas’ para a busca indireta de matéria escura”, afirmou a pesquisadora.
Para entender tal relação, é preciso recordar uma ideia central da cosmologia contemporânea. Segundo a teoria do Big Bang, ao se formar, cerca de 14 bilhões de anos atrás, o Universo possuía a mesma quantidade de matéria e antimatéria. Porém, uma quebra espontânea de simetria, ocorrida durante uma transição de fase do universo primordial, gerou um pequeno excedente de matéria – da ordem de uma partícula extra de matéria para cada 10 bilhões de pares de partículas e antipartículas. Todo o Universo atualmente conhecido, com suas galáxias, estrelas, planetas e outros objetos materiais, teria se originado desse excedente. Yoichiro Nambu, Makoto Kobayashi e Toshihide Maskawa receberam o Prêmio Nobel de Física de 2008 por seus estudos relativos à quebra espontânea de simetria.
Isso explicaria porque não encontramos antimatéria de forma estável atualmente no Universo. No modelo vigente sobre raios cósmicos, a produção de pósitrons e antiprótons é explicada em função das interações das partículas materiais durante sua propagação no meio interestelar. Mas as medidas realizadas por meio do AMS-02 forneceram um número de antipartículas maior do que o esperado a partir dos processos astrofísicos convencionais.
“Sabemos que a propagação de raios cósmicos no meio interestelar leva à produção de pósitrons e antiprótons. E sabemos também calcular o fluxo esperado dessas antipartículas em função da energia. Um excesso de eventos em relação às previsões exige que outros fenômenos físicos sejam considerados para explicar a diferença. Esse excesso já havia sido detectado pelo satélite PAMELA em 2008. E foi confirmado, com alta precisão, pelo AMS-02”, informou Vecchi.
É aqui que entra a matéria escura. Porque uma hipótese bastante plausível é a de que pares de partículas e antipartículas estejam sendo produzidos, em grande quantidade, a partir da aniquilação de matéria escura. Deve-se levar em conta que, segundo os cômputos atuais, 73% do conteúdo do Universo seria constituído por energia escura, 23% por matéria escura e somente 4% pela matéria conhecida. “Eu não diria que a matéria escura seja a única fonte da antimatéria dos raios cósmicos. Mas, sem dúvida, deve ser considerada como uma das possibilidades”, argumentou a pesquisadora.
Uma forte candidata a matéria escura é a partícula chamada Wimp – nome formado pelas iniciais das palavras que compõem a denominação inglesa weakly interacting massive particle (partícula massiva fracamente interativa). “A Wimp não é uma partícula do modelo padrão, mas é prevista em extensões do modelo. É concebida como uma partícula estável, portanto, não sujeita a decaimento. Quando aniquilada, daria origem a um par partícula-antipartícula”, explicou Vecchi.
Além da matéria escura, outras fontes possíveis para o excesso de antipartículas são objetos astrofísicos mais convencionais, como pulsares ou remanescentes de supernovas.
O excesso de antipartículas não é o único dado obtido pelo AMS-02 que desafia o modelo vigente. Outras medidas também parecem exigir uma revisão radical. Na composição dos raios cósmicos, 90% são constituídos por prótons (isto é, núcleos do átomo de hidrogênio ionizado). Depois, vêm 8% de partículas alfa (isto é, núcleos de hélio, com dois prótons e dois nêutrons). Em menor quantidade, vêm elétrons, outros núcleos produzidos nas fontes (carbono, nitrogênio, oxigênio e outros elementos, até o ferro), núcleos resultantes da fragmentação de outros raios cósmicos durante a propagação pelo meio interestelar (lítio, berílio e boro). E, compondo uma pequena fração, as antipartículas. “Os dados que já obtivemos não correspondem ao esperado a partir do modelo convencional”, sublinhou a pesquisadora.
Outro achado surpreendente, apesar de ser ainda preliminar, foi a suposta detecção de anti-hélio. “Em cinco anos, o AMS-02 detectou 3,7 bilhões de eventos de hélio e somente alguns poucos eventos de anti-hélio. Mesmo assim, esse achado pode ter grandes implicações fenomenológicas, pois, se confirmado, seria a primeira detecção de antinúcleos nos raios cósmicos”, comentou Vecchi.
A pesquisadora, que mantém uma colaboração científica ativa com o CERN, é professora-doutora do IFSC-USP. Seu auxílio à pesquisa, provido pela FAPESP por meio da modalidade Apoio a Jovens Pesquisadores, deve se estender até 2019.
Agência FAPESP