Nós caracterizamos neste trabalho a enzima L-asparaginase de S. cerevisiae. Os resultados indicam que essa proteína é capaz de aniquilar eficientemente células leucêmicas, com baixa citotoxicidade sobre células sadias”, disse Gisele Monteiro, professora da FCF-USP e coordenadora do estudo publicado.
Como explicou a pesquisadora, em determinadas neoplasias, entre elas a LLA, as células tumorais apresentam deficiência na produção de uma enzima chamada asparagina sintetase. Como resultado, não são capazes de sintetizar um aminoácido chamado asparagina.
“Esse tipo de célula depende de fontes extracelulares de asparagina, aminoácido fundamental para a síntese de proteínas e, consequentemente, de DNA e RNA. É, portanto, essencial para a divisão celular. Mas a enzima asparaginase depleta esse aminoácido do meio extracelular, convertendo-o em aspartato e amônia. Em pacientes com LLA isso resulta em uma queda acentuada nos níveis séricos de asparagina, o que compromete a síntese de proteínas nas células malignas e induz apoptose [uma espécie de suicídio celular]”, explicou Monteiro.
De acordo com a pesquisadora, desde a década de 1970 tem sido usada no tratamento de LLA uma enzima muito semelhante à L-asparaginase descrita no estudo, porém extraída da bactéria Escherichia coli. Em conjunto com outros medicamentos, a terapia com a enzima bacteriana pode alcançar uma taxa de remissão de até 80%. No entanto, cerca de 25% dos pacientes apresentam reações imunológicas ao tratamento, que vão de leves alergias até choque anafilático, ficando impossibilitados de usar o biofármaco.
Como alternativa, existem no mercado internacional dois outros medicamentos da mesma classe. Um deles é o PEG-asparaginase – uma versão da asparaginase de E. coli modificada quimicamente para esconder sítios imunogênicos da molécula e aumentar o tempo de atividade no organismo. Isso permite uma redução na dose terapêutica e, consequentemente, nos efeitos adversos. O outro fármaco similar é conhecido como Erwinase, que é a mesma enzima asparaginase, porém extraída da bactéria Erwinia chrysanthemi.
“Em razão de patentes da indústria farmacêutica, o custo desses dois fármacos alternativos pode ser entre 15 e 60 vezes maior que o da asparaginase de E. coli nativa, que, aliás, é a única aprovada para comercialização no Brasil pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)”, disse Adalberto Pessoa Junior, professor da Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCF) da USP.
Outro fator restringe ainda mais as opções terapêuticas para os portadores brasileiros de LLA: a única empresa que fabricava a asparaginase de E. coli no país descontinuou a produção em 2013.
Diante da crise no abastecimento do biofármaco, diversos cientistas brasileiros, de diferentes universidades, iniciaram projetos com o intuito de identificar novas fontes da enzima. Nesse contexto teve início o Projeto Temático “Produção de L-asparaginase extracelular: da bioprospecção à engenharia de um biofármaco antileucêmico”, coordenado por Pessoa Junior. Além de Monteiro, também é pesquisador principal o professor Marcos Antonio de Oliveira do IB-CLP-Unesp.
“Nosso objetivo neste projeto não foi simplesmente produzir a enzima, mas buscar em microrganismos uma nova fonte deste fármaco, visando a aplicação também nos casos em que os pacientes desenvolvem resistência à enzima bacteriana”, contou Oliveira.
Para isso, os pesquisadores isolaram fungos oriundos de diversos ambientes brasileiros, como Cerrado e Caatinga, além do ambiente marinho e terrestre da Antártica. Segundo Oliveira, esses organismos, muitas vezes, secretam asparaginases para o meio extracelular quando há uma carência de nitrogênio. “Isso torna mais barata a purificação da molécula para a produção de fármacos – o que é importante do ponto de vista industrial”, explicou.
O grupo também usou ferramentas de bioinformática para avaliar bancos de dados internacionais com informações sobre o genoma de diversos microrganismos. Dessa forma, foi identificado no genoma da S. cerevisiae um gene responsável por produzir uma enzima muito semelhante àquela encontrada na E. coli e na E. chrysanthemi, porém com algumas vantagens.
Segundo Iris Munhoz Costa, primeira autora do estudo, como a levedura é um organismo eucarioto (suas células têm núcleo bem definido, onde fica armazenado o material genético), assemelha-se mais ao organismo humano do que as bactérias. Por esse motivo acredita-se que a L-asparaginase induza uma resposta imune mais branda que as enzimas bacterianas.
O gene da L-asparaginase foi então clonado e, por meio de engenharia genética, os pesquisadores conseguiram fazer a bactéria E. coli expressar a enzima encontrada originalmente na levedura em grandes quantidades.
“Conseguimos obter a proteína recombinante e realizamos estudos para caracterizar sua estrutura secundária e identificar regiões importantes da enzima, os sítios catalíticos. Em seguida, avaliamos sua eficácia in vitro”, disse Costa.
A enzima foi testada em três diferentes linhagens celulares: uma tumoral incapaz de produzir asparagina em níveis normais (MOLT4); outra também maligna, mas capaz de produzir asparagina normalmente (REH); e uma terceira linhagem não maligna (HUVEC), que serviu como controle.
Essas três diferentes linhagens foram subdivididas em dois grupos: um tratado com a enzima comercial de E. coli e outro com a L-asparaginase de levedura.
“A enzima de bactéria matou cerca de 90% das células tumorais da linhagem MOLT4 e apresentou baixa toxicidade para a linhagem normal (HUVEC), matando apenas 10%. Já a enzima de levedura matou entre 70% e 80% das MOLT4 e apresentou uma toxicidade menor que 10% para as células HUVEC. Já na linhagem REH, a eficiência de ambas as enzimas não foi significativa”, relatou Monteiro.
Na avaliação da pesquisadora, os resultados são animadores – bem diferentes de estudos feitos com a mesma enzima na década de 1970. Naquela época, foi testada uma versão da proteína extraída diretamente da levedura, com muitas impurezas.
Boa parte do trabalho descrito no artigo foi feita durante o mestrado de Costa, com Bolsa da FAPESP e orientação de Monteiro.
Colaborou com as análises estruturais da proteína o doutorando Leonardo Schultz da Silva, bolsista (http://www.bv.fapesp.br/pt/bolsas/157503/caracterizacao-funcional-estrutural-e-modificacao-racional-da-aspasem-um-novo-farmaco-para-o-trata/) FAPESP e orientando de Oliveira.
O próximo passo do grupo é realizar novos testes in vitro com diferentes tipos de células para avaliar a resposta imune e a toxicidade. Caso os resultados sejam positivos, poderão ser feitos os primeiros testes em animais. O grupo estuda ainda possíveis modificações que possam ser feitas na estrutura da molécula para aumentar a atividade antitumoral e a meia-vida da enzima no organismo.
Além de LLA, a asparaginase também é usada no tratamento de outras neoplasias mais raras, como linfossarcoma, doenças de Hodgkin’s, leucemia linfocítica crônica, reticulossarcoma e melanossarcoma.
O artigo “Recombinant L-asparaginase 1 from Saccharomyces cerevisiae: an allosteric enzyme with antineoplastic activity” (DOI: 10.1038/srep36239) pode ser lido em: http://www.nature.com/articles/srep36239.
Agência FAPESP