A partir desse estudo, é possível cogitar a possibilidade de esses dois sistemas se tornarem atrativos alvos terapêuticos para melanomas.
A pesquisa em pauta é “Mecanismos de ajuste do relógio por luz e temperatura: aspectos filogenéticos”, coordenada por Ana Maria de Lauro Castrucci, professora sênior do IB-USP, e apoiada pela FAPESP. A pesquisa é também desenvolvida no âmbito de dois outros projetos apoiados pela FAPESP: no doutorado direto de Leonardo Vinicius Monteiro de Assis e no pós-doutorado de Maria Nathália Moraes.
À frente de um laboratório que sempre trabalhou com a fisiologia da pigmentação, com enfoque comparativo (invertebrados, vertebrados não mamíferos, vertebrados mamíferos e humanos), Castrucci passou um período sabático na Uniformed Services University of the Health Sciences (USUHS), dos Estados Unidos, onde um grupo trabalhava com uma célula pigmentar de anfíbios diretamente responsiva à luz.
“Eu estava com esse grupo, em Bethesda, Maryland, quando descobrimos que o fotopigmento descoberto em anfíbios também estava presente na retina de camundongos. De lá para cá, incorporei aos meus projetos temáticos a investigação dessas opsinas nos tecidos periféricos de vertebrados, com o objetivo de conhecer sua resposta à luz, à temperatura e aos hormônios”, relatou a pesquisadora.
As respostas não visuais à luz estão associadas à presença de um grupo de proteínas chamadas melanopsinas. Elas receberam esse nome por terem sido descobertas nos melanóforos de anfíbios, e não na retina, como ocorre com outras opsinas. A melanopsina participa de processos como o ajuste do relógio central biológico (localizado no hipotálamo, em mamíferos), que regula todas as funções rítmicas (sono; alimentação; temperatura corpórea; liberação de vários hormônios, como o cortisol).
Graças à presença das melanopsinas, as células da pele de peixes e anfíbios são diretamente responsivas à luz. Nos anfíbios, a resposta pode ser a migração de grânulos de pigmento dentro da célula pigmentar, provocando a mudança de cor da pele, como o escurecimento, por exemplo.
“Em vertebrados não mamíferos, mostramos que os fótons interagem com as melanopsinas e provocam uma sinalização celular. Essa sinalização é uma cascata de eventos semelhante àquela produzida pela luz na retina de mamíferos”, ressaltou a pesquisadora. “Trata-se de uma via conservada evolutivamente. A melanopsina é uma opsina antiga, em termos evolutivos. Ela é mais primitiva na medida em que não forma imagens: é um fotopigmento só para a percepção de claro-escuro. O fato de que a cascata que a luz induz na pele desses não mamíferos seja idêntica à cascata que a luz induz na retina do humano é um achado importante em fisiologia comparativa”, acrescentou.
“Nosso grupo na USP foi o primeiro a demonstrar que as melanopsinas estão presentes também nas células pigmentares de aves e de mamíferos. E que podem ter um papel no ajuste do relógio das células pigmentares de mamíferos em resposta à luz visível, ao infravermelho e ao ultravioleta”, informou Castrucci.
Já que a melanopsina está relacionada com a percepção da luz e o ajuste do relógio biológico central, os pesquisadores se perguntaram se essas células periféricas que respondem à luz não seriam também elas “relógios”. E, assim sendo, como a resposta à luz poderia ajustar sua “maquinaria de relógio”. Em outras palavras, quais seriam as vias de sinalização envolvidas na cascata de eventos desencadeada a partir da impressão das melanopsinas pela luz?
“Desmentimos o paradigma de que os mamíferos só podem perceber luz visível por meio da retina. Mostramos que as células pigmentares, os melanócitos, também podem responder à luz, com o aumento da síntese de melanina e com a modificação dos chamados genes de relógio. E essa resposta é exacerbada no melanócito maligno – ou seja, no melanoma. O fato de o melanoma ser tão sensível à luz e ter seus genes de relógio tão afetados faz com que os mecanismos envolvidos possam ser pensados como alvos terapêuticos contra a progressão desse tipo de câncer”, disse Castrucci à Agência FAPESP.
Outro achado desse projeto é o fato que as respostas induzidas pela radiação UVA, como o aumento do conteúdo de melanina e a ativação de genes de relógio, por exemplo, se perdem quando este estímulo é associado ao calor. Esse é o primeiro relato da interação radiação UVA/calor, o que poderá ser base para uma modalidade de tratamento para pacientes com doenças de despigmentação como, por exemplo, o vitiligo.
No caso específico dos melanomas, o estudo foi conduzido, até agora, em culturas de células. O próximo passo do grupo será pesquisar o processo in vivo com camundongos, comparando, em animais com e sem melanomas, o que acontece com suas maquinarias de relógios periféricos. “Estamos iniciando esta fase e vamos estudar tanto os tumores e tecidos adjacentes quanto outros órgãos, pois sabemos que o câncer exerce um efeito macro em vários tecidos como o fígado, tecido adiposo, tecido adiposo marrom, o qual ainda é pouco compreendido”, adiantou Castrucci.
Esse eventual caminho para a prevenção e o tratamento do câncer e doenças despigmentares confere uma notável perspectiva de aplicação para uma pesquisa de grande porte que se desenvolve no campo da ciência básica.
Agência FAPESP