A pesquisa contou com apoio da FAPESP.
“Sabemos que a restrição de sono está associada a diversas alterações hormonais e mostramos que quando ela ocorre durante a gestação as consequências podem afetar a prole. Claro que resultados observados em ratos não podem ser transpostos diretamente para humanos, mas é um primeiro indício”, disse Gomes à Agência FAPESP.
Segundo a pesquisadora, o tempo médio de sono considerado ideal no caso dos ratos é semelhante ao recomendado para humanos: entre sete e oito horas por noite. No experimento, as ratas prenhes tiveram esse tempo de sono reduzido para quatro horas, mas apenas na última semana de gestação – o que, de acordo com Gomes, equivaleria ao último trimestre gestacional humano. Em ratos, o feto leva aproximadamente 21 dias para se desenvolver no ventre materno.
“Nosso objetivo principal era investigar o efeito da privação de sono materna sobre a função renal da prole e é justamente nessa fase final da gestação que ocorre a formação dos rins. Estudos anteriores do nosso grupo já haviam indicado que a restrição de sono apenas na última semana era suficiente para induzir alterações significativas”, contou Gomes.
Após o nascimento, os pesquisadores observaram que, em comparação ao grupo controle, os filhotes das ratas privadas de sono apresentavam uma redução no número de néfrons – as unidades funcionais do rim, responsáveis por filtrar o sangue e formar a urina. Esses animais também apresentaram hipertrofia glomerular e tinham uma taxa de filtração glomerular alterada em relação ao controle.
Além disso, foi observado um aumento na atividade simpática para o coração – fator que favorece a elevação na frequência cardíaca. Segundo relatou Gomes, parece haver nesses animais um prejuízo do barorreflexo – um importante mecanismo de ajuste rápido da pressão arterial existente no sistema nervoso central.
“Normalmente, quando há elevação da pressão arterial por algum motivo, o barorreflexo é ativado e isso induz uma série de modificações no organismo com o objetivo de diminuir a frequência cardíaca e reduzir os níveis pressóricos. Mas, nesses ratos, essa resposta não acontece como deveria”, disse Gomes.
Em decorrência das alterações, os filhotes machos das ratas privadas de sono desenvolveram hipertensão cerca de três meses após o nascimento – logo após atingir a idade adulta (algo equivalente a 25 anos para humanos). As fêmeas, por outro lado, apresentavam valores de pressão arterial ainda dentro da faixa considerada normal – embora mais altos que os observados nas integrantes do grupo controle.
“Os hormônios femininos conferem proteção para o sistema cardiovascular, pois contribuem para a produção de óxido nítrico, um potente vasodilatador que melhora a função renal”, explicou Gomes.
Já em um segundo experimento, os filhotes fêmeas das ratas privadas de sono tiveram os ovários extraídos ainda bem jovens e, por volta de 8 meses de idade, também tornaram-se hipertensas. Os resultados desse estudo foram divulgados em agosto na revista Physiological Reports.
Os dados dos testes com os filhotes machos haviam sido previamente descritos nas revistas PLoS One e Clinics.
Programação fetal
Na avaliação de Gomes, o estresse causado nas mães pela privação de sono – e o consequente aumento na liberação do hormônio corticosterona (o equivalente ao cortisol humano) – seria uma das possíveis causas do prejuízo observado no desenvolvimento renal dos filhotes.
“Há uma enzima na placenta que protege o feto do hormônio do estresse: a 11-beta-HSD (11 beta-hidroxiesteroide-desidrogenase). Mas, no final da gestação, ela está diminuída porque o feto precisa de corticoides para terminar o amadurecimento. Se houver um excesso de corticosterona, porém, pode haver dano”, afirmou a pesquisadora.
Ainda são necessários novos estudos para comprovar essa teoria. Outra possibilidade futura de pesquisa, segundo Gomes, é avaliar no sistema nervoso central dos filhotes a expressão de proteínas que integram o sistema renina-angiotensina-aldosterona – um conjunto de proteínas responsável pelo controle da pressão arterial.
De acordo com Gomes, os prejuízos renais observados na prole nesse modelo de privação de sono foram, de certa forma, semelhantes ao de outro estudo conduzido na Unifesp pela professora Frida Zaladek Gil, no qual as ratas prenhes foram submetidas a restrição alimentar.
“São modelos de programação fetal que parecem estimular o desenvolvimento da hipertensão arterial. Submetido a uma condição adversa, o organismo do feto privilegia o desenvolvimento de alguns órgãos em detrimento de outros. O rim é prejudicado em detrimento do coração e do cérebro, por exemplo”, explicou Gomes.
No Brasil, segundo a pesquisadora, pelo menos 25% da população sofre de hipertensão e especialistas acreditam existir subnotificação de casos. “Muitas vezes não se sabe a origem do problema. Pode ser que a programação fetal tenha uma participação importante. Vários fatores podem estar contribuindo e precisamos conhecer quais são. Espero que os resultados deste estudo contribuam para reforçar para as pessoas a importância de dormir o mínimo necessário”, disse a pesquisadora.
O efeito do diabetes
Ainda durante a FeSBE, Gomes apresentou resultados de outra pesquisa de seu grupo que mostrou como o diabetes descontrolado durante a gestação pode afetar a atividade renal e aumentar o risco de hipertensão na prole. O experimento também foi feito com ratos.
“O dano renal observado nesse modelo foi um pouco diferente. Não há diminuição no número de néfrons e, no entanto, os filhotes das ratas diabéticas apresentaram uma disfunção renal significativa, com menor taxa de filtração glomerular e menor fluxo urinário. Além disso, desenvolveram hipertensão na vida adulta”, contou Gomes.
Segundo a pesquisadora, a causa da disfunção observada nesse modelo estaria relacionada com um aumento da atividade simpática renal – o que estimula a secreção da enzima renina, que por sua vez promove a produção de angiotensina e aldosterona, elevando a pressão arterial e promovendo vasoconstrição.
No trabalho, o grupo da Unifesp conseguiu reverter a disfunção renal e controlar a pressão por meio de uma cirurgia que desconectou parte dos nervos ao redor da artéria renal – técnica conhecida como denervação simpática renal. Os resultados foram divulgados em 2013 na revista American Journal of Physiology Renal Physiology.
Agência FAPESP