“Além de eliminar a dor nos animais, o tratamento promoveu a regeneração parcial da camada de mielina, uma capa membranosa que recobre os neurônios e atua como isolante elétrico, auxiliando na propagação dos impulsos nervosos”, contou Camila Squarzoni Dale, professora do Departamento de Anatomia do ICB-USP e coordenadora do estudo.
Conforme explicou a pesquisadora, a neuropatia diabética é uma das complicações crônicas mais comuns e incapacitantes do diabetes. Quando a doença não é adequadamente controlada, o excesso de glicose presente no sangue causa a oxidação da bainha de mielina e lesiona a estrutura de nervos periféricos. Além de causar dor, esse processo degenerativo prejudica a comunicação entre os neurônios e pode até levar à amputação de membros.
Estima-se que aproximadamente metade dos diabéticos apresenta alguma forma de neuropatia e, atualmente, não há um tratamento capaz de reverter o quadro – apenas opções paliativas para a dor.
Potencial analgésico
O grupo de Dale decidiu testar em animais o potencial analgésico da hemopressina após observar que a estrutura química do peptídeo é semelhante à de substâncias classificadas como opioides, como a morfina, já bastante usadas no combate à dor.
O peptídeo foi descrito pela primeira vez em 2013, pelo pesquisador do ICB-USP Emer Ferro, que o isolou no cérebro de camundongos. Desde então, diversos grupos vêm investigando seus efeitos biológicos.
No organismo humano, a hemopressina integra a cadeia polipeptídica que forma a hemoglobina, proteína que dá a cor vermelha ao sangue. Em estudos anteriores feitos no ICB-USP, Dale havia mostrado que a molécula é capaz de se ligar a receptores canabinoides (do tipo CB-1) existentes nas células do sistema nervoso central.
Nos experimentos mais recentes, foram usados peptídeos idênticos aos naturais sintetizados em laboratório e administrados por via oral aos animais.
Para induzir nos camundongos sadios uma condição semelhante à do diabetes do tipo 1, os pesquisadores injetaram uma droga chamada estreptozotocina (STZ). A substância destrói as células beta do pâncreas, que são as responsáveis pela produção de insulina. Cerca de 14 dias depois, os animais já apresentam sintomas de neuropatia.
Para medir o limiar de dor nos roedores foi usado um método conhecido como filamentos de von Frey – um conjunto de fios de náilon, com espessuras variadas, que são pressionados sobre a pata do animal.
“Cada filamento representa uma força em gramas (g). Começamos com um tão fino quanto um fio de cabelo – que em animais sadios não induz dor –, até chegar a um com espessura equivalente à de uma carga de caneta esferográfica”, explicou a pesquisadora.
Enquanto animais saudáveis demonstram reação de desconforto apenas com pressão superior a 1g, aqueles que haviam desenvolvido a neuropatia aguentaram, no máximo, 0,2g.
“Após o tratamento com hemopressina, porém, os camundongos diabéticos passaram a responder como animais saudáveis, ou seja, apenas com pressão de 1g ou mais demonstraram sinais de dor”, contou Dale.
Análises histológicas dos nervos periféricos revelaram que o diabetes causou uma redução de 30% na camada de mielina dos animais que receberam a injeção de STZ. No grupo tratado com hemopressina, 50% do total de mielina que havia sido perdido foi recuperado.
Os pesquisadores do ICB-USP ainda não sabem por quais mecanismos a hemopressina promoveu a regeneração dos nervos nos camundongos diabéticos. No entanto, Dale apresentou uma hipótese para explicar o efeito analgésico observado.
“Sabemos que a hemopressina é capaz de se ligar a receptores CB-1. Acreditamos que isso faz com que esses receptores canabinoides se liguem a receptores opioides do tipo Mu e isso produz o efeito analgésico. É um mecanismo bastante novo de inibição da dor que estamos propondo”, explicou a pesquisadora.
Na avaliação de Dale, o potencial terapêutico da hemopressina também poderá ser explorado em estudos futuros no tratamento de outras doenças degenerativas da bainha de mielina.
Parte dos resultados obtidos até o momento foi publicada na revista Peptides e no Journal of Diabetes & Metabolism.
Agência FAPESP