Os resultados foram divulgados no dia 27 de junho em artigo na revista Nature Genetics. Segundo Ferreira, eles confirmam achados anteriores que haviam indicado uma variabilidade genômica muito maior do que a observada na espécie P. falciparum, predominante no continente africano, que causa uma forma mais agressiva da doença.
Na avaliação do pesquisador, esse repertório mais amplo de variantes genéticas confere à espécie P. vivax maior capacidade de se adaptar ao meio em que vive – o que inclui aprender mais eficazmente a driblar as defesas do organismo hospedeiro e desenvolver resistência às drogas usadas no tratamento da doença.
“É importante entender a plasticidade genômica do parasita, pois uma espécie com repertório de variantes genéticas grande e com capacidade de modificar esse repertório rapidamente é difícil de ser controlada. Parece ser o caso do P. vivax”, disse Ferreira.
Até a publicação deste artigo, apenas cinco genomas completos de P. vivax haviam sido descritos em um trabalho anterior, também publicado na Nature Genetics em 2012. Já no caso do P. falciparum, de acordo com Ferreira, há mais de mil genomas completos descritos na literatura científica.
As 182 amostras analisadas neste novo estudo foram coletadas de pacientes oriundos de 11 países: Colômbia, México, Peru, Brasil, Papua-Nova Guiné, Mianmar, Tailândia, Coreia do Norte, Índia, Camboja e Madagascar. Segundo Ferreira, todas as áreas geográficas onde o P. vivax está presente foram contempladas.
A força-tarefa foi coordenada por Jane M. Carlton, professora da New York University, nos Estados Unidos, e coordenadora de um centro de pesquisa na Índia ligado ao ICEMR. O consórcio é financiado pelo NIH por meio do National Institute of Allergy and Infectious Diseases (NIAID).
Ferreira integra um centro do ICEMR dedicado a estudar a malária na região amazônica, tanto no Brasil como no Peru, sob a coordenação de Joseph M. Vinetz, professor da University of California, San Diego.
O pesquisador brasileiro contribuiu com 20 amostras coletadas no município de Acrelândia (AC), na fronteira com a Bolívia, durante um projeto de pesquisa apoiado pela FAPESP.
Adaptação ao vetor
Uma das conclusões apresentadas no artigo é que há muito mais diversidade genética em uma população geograficamente restrita de P. vivax, a da Amazônia, por exemplo, do que na população global de P. falciparum. Essa variabilidade é medida pela quantidade de versões alternativas existentes para o mesmo gene (polimorfismos).
Na avaliação de Ferreira, tal fenômeno pode ter duas explicações: ou a taxa de mutação do P. vivax é maior que a do P. falciparum ou a espécie adaptou-se aos seres humanos há mais tempo e, portanto, acumulou ao longo dos anos de evolução um maior número de polimorfismos.
A má notícia é que entre os genes mais polimórficos (com maior número de versões alternativas) estão aqueles que codificam antígenos, ou seja, são responsáveis pela produção das proteínas que vão ser reconhecidas pelo sistema imunológico do hospedeiro – seja ele o mosquito vetor ou os humanos. Segundo Ferreira, tal fato dificulta o desenvolvimento de uma imunidade protetora.
Outra conclusão do estudo é que na espécie P. vivax há uma clara divergência entre os parasitas do velho mundo (África, Ásia e Oceania) e os do novo mundo (América Latina).
“Quando olhamos para a árvore filogenética, vemos um agrupamento do novo mundo e outro do velho mundo muito bem divididos”, comentou Ferreira.
Uma série de análises foi feita para descobrir em qual região do genoma essa distinção entre velho e novo mundo se torna mais evidente. Chamou a atenção dos pesquisadores um gene localizado no cromossomo 12 e identificado como Pvs47.
“A proteína que ele codifica está associada à capacidade do parasita de escapar da resposta imune do mosquito vetor. Ele está expresso, portanto, somente na forma sexuada do parasita que infecta o mosquito”, disse Ferreira.
Segundo o pesquisador, os resultados do sequenciamento mostram que, enquanto há uma grande variedade de polimorfismos para o gene Pvs47 nos parasitas do velho mundo, nos espécimes do novo mundo praticamente não há variação nesse gene.
“Tal dado indica que ocorreu um fenômeno que chamamos de selective sweep [varredura seletiva]. Ao chegar nas Américas, a espécie teve de se adaptar aos vetores aqui existentes. Apenas os parasitas que tinham um determinado polimorfismo que permitia escapar da resposta imune desse novo mosquito sobreviveram”, afirmou Ferreira.
Embora tanto no velho como no novo mundo a doença seja transmitida por mosquitos do gênero Anopheles, há uma grande variedade de espécies. Na África, os mais comuns são o A. gambiae, o A. funestus e o A. arabiensis. Na Ásia há um pequeno destaque para o A. sinensis. Já no Brasil e nos países vizinhos a principal espécie é A. darlingi.
“Essa hipótese da varredura seletiva relacionada ao gene Pvs47 foi originalmente proposta para o P. falciparum. Mas há muitos cientistas que não acreditam que um único gene seja responsável por todo um processo biológico complexo como a adaptação a um vetor completamente diferente. É provável que o Pvs47 não seja o único ator desta peça e que haja outros genes envolvidos”, avaliou Ferreira.
Dados brasileiros
Além das 20 amostras brasileiras que foram analisadas no âmbito do trabalho publicado na Nature Genetics, o grupo coordenado por Ferreira já sequenciou o genoma de outras nove amostras coletadas em Acrelândia. O trabalho está sendo desenvolvido durante o mestrado de Thaís Crippa de Oliveira, coorientada por Ferreira e por seu colega de instituto João Marcelo Alves Pereira, especialista em bioinformática.
“Nosso objetivo é explorar melhor a posição do Brasil em relação aos demais países da América Latina. Estamos comparando com os dados de Colômbia, Peru e México que integraram o trabalho do ICEMR. Devemos publicar em breve”, contou Ferreira.
Segundo o pesquisador, cerca de 85% dos casos de malária no Brasil são causados pelo P. vivax e, o restante, pelo P. falciparum. Até os anos 1980 a proporção era igual, mas graças às medidas de controle implementadas no país houve grande redução nos casos de P. falciparum.
“Por questões relacionadas à biologia do parasita, o P. vivax é mais difícil de controlar. O portador permanece infectante para os mosquitos por mais tempo e, mesmo após se curar, pode ter várias recaídas. Cada vez que o parasita volta para a circulação, a pessoa volta a ficar infectante”, explicou.
O artigo Population genomics studies identify signatures of global dispersal and drug resistance in Plasmodium vivax (doi: 10.1038/ng.3588) pode ser lido em www.nature.com/ng/journal/vaop/ncurrent/full/ng.3588.html.
Agência FAPESP