Mas apesar de todos esses indicativos, algumas pistas levavam exatamente na direção contrária: em 1997, um resumo apresentado pelos pesquisadores Bruce B. Collette e Klaus Rützler em simpósio científico internacional sobre recifes de corais, na cidade de Miami, nos Estados Unidos, falava da presença de esponjas e peixes recifais na região da foz do rio Amazonas. Em 1999, o brasileiro Rodrigo Moura e colaboradores também demonstraram a presença de corais na foz sul do rio. Estudos do projeto Piatam Mar apontavam ainda para alta concentração de carbonato de cálcio biogênico naquelas imediações, levantando a possibilidade de recifes na região. Mas foi somente em 2011 que uma equipe de pesquisadores elaborou projeto para explorar a área. Agora, em 2016, confirmou-se a existência de invertebrados, como esponjas de mais de 100 quilos, e rodolitos, algas calcárias que endurecem e unidas a outras espécies acabam formando um recife. E, como constataram os pesquisadores, esse recife é extenso. “O que sabemos é que se estendem por, no mínimo, 900 quilômetros de costa, entre o Maranhão e a Guiana Francesa”, afirma Thompson.
Está tudo no artigo An extensive reef system at the Amazon river mouth, publicado na Science Advances, da American Association for the Advancement of Science, assinado por Moura, do Instituto de Biologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), pelos Cientistas do Nosso Estado, da FAPERJ, Fabiano L. Thompson, da UFRJ, e Carlos Eduardo de Rezende, da Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf), que coordenam o projeto, e vários outros pesquisadores do Rio de Janeiro, de universidades do Pará, Bahia, Pernambuco, Paraíba, Espírito Santo, São Paulo e dos Estados Unidos.
“Em 2012, conseguimos ir até lá com um navio americano. Em 2014, voltamos à região no navio hidroceanográfico Cruzeiro do Sul, da Marinha do Brasil, o que nos possibilitou ampliar a área de estudos”, fala Thompson, que destaca o inusitado das descobertas. “Além das gigantescas esponjas, mais de 50 novas espécies foram enviadas ao biólogo Eduardo Hajdu, do Museu Nacional (MN/UFRJ), para serem descritas”, afirma Thompson.
O pesquisador tem grandes motivos de entusiasmo com a descoberta. Ele explica que o novo bioma compreende três grandes camadas distintas. A primeira delas é formada pela pluma de nutrientes e sedimentos trazidos pelo rio Amazonas, rica em matéria orgânica dissolvida e particulada. É uma camada muito turva, que impede a penetração da luz solar e a fotossíntese, e sua espessura pode chegar a 25 metros de profundidade. “Tudo isso gera uma mudança dramática nesse novo bioma. Sem fotossíntese, não há liberação de oxigênio na água. Logo, o nível de oxigênio naquelas águas decai rapidamente nos primeiros metros de profundidade, atingindo valores entre 3 e 4 mL.L-1. Exatamente por isso, sempre vigorou a ideia da impossibilidade da existência de recifes na desembocadura de rios tropicais barrentos, com grande aporte de sedimentos, como é ocaso do Amazonas”, fala o pesquisador. Thompson explica que isso permanece verdade para os recifes coralinos – aqueles formados pelo acúmulo do esqueleto de corais mortos e que dependem de fotossíntese. “Mas não existe apenas um único tipo de recife. No caso da região amazônica, os recifes do setor norte são formados majoritariamente por esponjas e algas calcárias”, afirma.
Várias espécies de esponjas coletadas na região
Na camada seguinte, a subpluma, os micro-organismos que nela vivem retiram a energia de que precisam da quimiossíntese. Ou seja, dos minerais dissolvidos na água e não da luz como acontece na fotossíntese. Minerais como enxofre, ou nitrogenados, como amônia. “Usando-os como fonte de energia, bactérias de origem marinha dão andamento a um processo bioquímico, celular e autotrófico. Em outras palavras, com essa energia, eles produzem suas próprias células e matéria orgânica (exudados).” Por sua vez, essas bactérias e seus exudados são a base de alimentação de micro-organismos, esponjas, moluscos e outros invertebrados marinhos. Na terceira camada, de fundo ou bentônica, espalham-se esponjas e outros invertebrados, além de peixes e lagostas, que se alimentam das bactérias da subpluma. “O que chamou a atenção foi a presença de recifes de dezenas de metros de altura e mais de 100 metros de comprimento, espalhando-se entre 60m e 120m de profundidade, a cerca de 100 quilômetros da foz do rio”, anima-se o pesquisador. Thompson explica ainda que, como a maior parte dos 300 mil metros cúbicos/segundo de água barrenta que o Amazonas despeja no oceano Atlântico é levada pelas correntes marítimas para o norte, isso faz com que o recife não seja homogêneo. “Precisamos mapear mais de 8.000km2, já que não conhecemos a estrutura e a funcionalidade dos habitats da região.” Por isso mesmo, ele destaca a importância de ampliar os estudos naquela área, já que as evidências desse ambiente atípico não podem ser perdidas ou ignoradas diante da possibilidade de exploração de petróleo na região. “Esperamos que o País e o estado do Rio de Janeiro possam ampliar os investimentos em ciência e tecnologia, em especial na área de Ciências do Mar, pois estes resultados mostram claramente que conhecemos muito pouco da nossa Amazônia Azul”, diz.
Além de quebrar paradigmas, a pesquisa dos cientistas traz a necessidade de medidas protetoras, que possibilitem o uso dessa biodiversidade marinha. “As esponjas produzem compostos bioativos que podem ter aplicação na biotecnologia, na produção de medicamentos. Afinal, o Rio de Janeiro é pioneiro nessa área”, afirma o pesquisador. Ele lembra que a UFRJ, em parceria com o Instituto de Estudos Almirante Paulo Moreira (IEAPM), e a Universidade Federal Fluminense (UFF) oferecem doutorado em biotecnologia marinha, sob a coordenação dos Cientistas do Nosso Estado da FAPERJ Ricardo Coutinho e Renato Crespo Pereira. Também na Uenf existe um programa de pós-graduação em Biociências e Biotecnologia.
Para o biólogo, já que a região, próxima da Guiana Francesa, pode ser uma nova fonte para a descoberta de novos medicamentos, também é preciso regulamentar formas de preservá-la e manter a nossa soberania. “Nossa contribuição para isso foi acadêmica, na medida em que descobrir a existência totalmente atípica desse novo bioma foi algo bastante significativo”, fala. A questão que se coloca agora é que, por não estarem nos limites de uma área de proteção ambiental e, pelo contrário, se situarem em um local de intensa atividade pesqueira e industrial, toda aquela região se torna vulnerável. “Ainda mais pela perspectiva de projetos de exploração de óleo e gás para aquela área”, diz Thompson. Como ele afirma, os pesquisadores estão longe de compreender o funcionamento de todo aquele sistema. Há inúmeros aspectos que ainda precisam ser estudados. “Justamente por isso, não podemos nos dar ao luxo de perder este novo bioma que ainda nem entendemos completamente”, alerta o biólogo, que pretende em breve voltar à região. Certamente, será mais uma oportunidade para novas descobertas.
Assessoria de Comunicação FAPERJ