Mas novas descrições não param de surgir. E não só de espécies, como também de gêneros. É o caso de duas novas espécies de lagartos, pertencentes a um novo gênero, Rondonops, uma homenagem ao marechal Cândido Rondon, explorador da Amazônia no início do século 20. A pesquisa foi realizada pelos herpetólogos Miguel Trefaut Rodrigues, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo, e Guarino Colli, da Universidade de Brasília, entre outros.
O trabalho, publicado no periódico Zootaxa, em agosto de 2015, apresenta as espécies Rondonops biscutatus, de Rondônia e Mato Grosso, e R. xanthomystax, do Amazonas. O estudo conta com o apoio da FAPESP, no âmbito do projeto temático “Comparative phylogeography, phylogeny, paleoclimate modeling, and taxonomy of neotropical reptiles and amphibians”, no âmbito do programa BIOTA-FAPESP.
O lagarto do gênero Rondonops é um animal pequeno. Seu comprimento, da ponta do focinho até a base da cauda, é de 6,5 cm, sendo que a cauda pode ser até três vezes maior que o seu corpo.
“É um bicho fossorial, que vive fuçando. Tem uma cauda longa e uns bracinhos pequenos, que ficam colados ao corpo. Ele se locomove como se fosse uma cobra, quase que nadando entre as folhas caídas, num movimento serpentiforme”, explica Guarino Colli, referindo-se ao R. biscutatus. “Eles vivem no meio da mata seca ou alagada. Quando vem a chuva, o bicho sobe num tronco ou num cupinzeiro. Entra nos buracos da madeira podre, onde pode comer cupins, aranhas, tudo o que conseguir pegar.”
Segundo Miguel Trefaut Rodrigues, “as principais características do gênero Rondonops são a forma e a contagem de escamas e sua coloração muito específica.” Para quem não sabe, o tamanho das escamas, seu ordenamento e quantidade têm importância fundamental para sinalizar a existência de uma espécie de lagarto. As escamas não cobrem simplesmente o corpo do bicho. Elas recobrem o bicho de acordo com um padrão específico e particular, que muda de um gênero para outro, e de uma família para a outra. “As escamas têm nomes específicos, quase como se fossem ossos. Cada uma tem um nome”, diz Colli.
No caso de Rondonops, o gênero tem duas fileiras longitudinais de escamas que começam na nuca e, da quinta fileira para baixo, se dividem em diversas outras fileiras. Já a barriga apresenta apenas duas fileiras de escamas, característica que Rondonops compartilha com o gênero Iphisa. A singularidade do novo gênero também foi comprovada por meio do exame de DNA.
Os exemplares de R. biscutatus foram coletados em dois locais de Rondônia, perto de Pimenta Bueno e de Guajará-Mirim, e também no Mato Grosso, no Parque Estadual do Cristalino e na Serra do Cachimbo. E já correm risco de extinção. Na região de Pimenta Bueno, por exemplo, a floresta está muito fragmentada. Fica no chamado “arco de desflorestamento” do sul da Amazônia, onde a mata está sendo rapidamente substituída pelo gado e pela soja.
“Áreas onde estivemos em 2000 não existem mais. Viraram lavoura de soja”, diz Colli. “Coleta-se em Rondônia desde o século 19, mas nunca se acharam estes bichos antes. Não constavam de coleção nenhuma. Devem existir muitas outras espécies desconhecidas naquela região, e que estão virando fumaça.”
E quanto à outra espécie do gênero Rondonops? “Miguel havia coletado um material parecido àquele que eu estava descrevendo. Daí resolvemos escrever juntos e definir o novo gênero”, diz Colli. A nova espécie achada por Rodrigues foi R. xanthomystax, coletada no sudeste do Amazonas, no rio Abacaxis. A cidade mais próxima é Nova Olinda do Norte, no rio Madeira.
“A espécie de Rondonops do Amazonas possui dedos bem mais longos que os dedos da espécie de Rondônia”, explica Rodrigues. “Isso sugere que ele tenha hábitos mais arbóreos que seu congênere de Rondônia, que tem dedos mais curtos e é terrícola. Um dos bichos que nós pegamos, aliás, estava a uns 3 metros de altura, numa árvore, sinal de que ele pode escalar.”
De acordo com Rodrigues, a região onde esta espécie foi achada se encontra muito melhor preservada do que o devastado Estado de Rondônia. “Ainda existem muitas comunidades indígenas no leste do Amazonas. Mas a região já começa a ser explorada.”
Miguel Trefaut Rodrigues tem dado grande contribuição para a expansão do conhecimento da nossa diversidade de répteis. Com 40 anos de carreira científica, ele participou da descrição de 71 das 773 espécies de répteis brasileiros (sem falar em 12 espécies de anfíbios). Especificamente do lagartos, ele participou da descrição de 58 das 266 espécies conhecidas.
Em 2010, foi publicada no Zootaxa uma lista dos 40 zoólogos que mais descreveram espécies de répteis desde Lineu, o pai da taxonomia, no século 18. A lista é formada principalmente por naturalistas do século 19. Do século 20 só constam 11 nomes, entre eles, o de Rodrigues.
Aos 62 anos, ele continua em plena atividade e faz um alerta para o estado de preservação dos répteis brasileiros. Em relação aos lagartos, o herpetólogo classifica a situação como sendo bastante crítica. Já no caso das cobras a coisa é muito pior. “No Brasil ainda vale o ditado que diz que cobra boa é cobra morta. Basta o mateiro ver uma cobra que já trata de pegar um pau para matá-la. É preciso um trabalho de conscientização muito grande para alterar esse padrão de comportamento.”
“Estamos ainda numa fase muito precária do conhecimento da nossa fauna. Um sinal disso é que, mesmo agora no século 21, ainda é possível descrever novos gêneros. Mas está indo tudo embora. A Mata Atlântica, onde a derrubada é proibida, vai sendo sub-repticiamente detonada. O Cerrado e a Caatinga estão sendo destruídos numa velocidade impressionante”, diz Rodrigues. “E desde 2003, o governo federal não cria nenhum novo parque nacional, nenhuma nova reserva biológica.”
O artigo Description and phylogenetic relationships of a new genus and two new species of lizards from Brazilian Amazonia, with nomenclatural comments on the taxonomy of Gymnophthalmidae (Reptilia: Squamata), de Guarino R. Colli e outros, publicado em Zootaxa, pode ser lido no endereço http://biotaxa.org/Zootaxa/article/view/zootaxa.4000.4.1.
Agência FAPESP