O estudo da sedimentologia dos depósitos onde foi achado o fóssil, para a definição do ambiente onde viveu o crocodilo, ficou a cargo do geólogo Giorgio Basilici, do Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em pesquisa que contou com o apoio da FAPESP.
Os crocodilos, jacarés e gaviais são o retrato esmaecido de um passado glorioso. Se os crocodilianos encontram-se hoje confinados às margens dos rios e pântanos de todo o mundo (há uma única espécie marinha, na Austrália), nem sempre foi assim. Nos períodos Jurássico e Cretáceo, por quase 100 milhões de anos, a superordem dos crocodilomorfos conviveu e competiu por comida em terra com os dinossauros, e nos mares com os mosassauros e pliossauros.
Entre as centenas de espécies extintas cujos fósseis já foram identificados, salta aos olhos os notossúquios, ramo que evoluiu no antigo supercontinente Gondwana, que unia a América do Sul à África, Índia, Austrália e Antártica.
Os notossúquios, ou crocodilos do Sul, eram exclusivamente terrestres. Possuíam patas longas, ficavam em pé sobre as quatro membros e se locomoviam mais à semelhança dos quadrúpedes do que de seus primos rastejantes.
Os notossúquios eram divididos em dois grupos, explica o paleontólogo Lucas Fiorelli. Um grupo era composto por feras caçadoras. “Os animais deste grupo eram bem maiores e totalmente carnívoros”, ele descreve. O maior exemplo, em termos de tamanho, e também o melhor exemplo, em termos de voracidade, é o Baurusuchus, com 3 metros e 400 quilos que vivia na região de Baurur, em São Paulo, há 90 milhões de anos.
Ao lado dos grandes dinossauros carnívoros, o Baurusuchus era o predador máximo da bacia Bauru, um bioma com rios e lagos, porém seco e quente, que se estendeu por todo o sudeste brasileiro no Cretáceo superior, entre 90 e 80 milhões de anos.
Um segundo grupo de notossúquios é considerado mais avançado, pois dono de hábitos alimentares diferenciados. “É uma pergunta complicada saber por que um grupo carnívoro virou herbívoro,” argumenta Fiorelli. Não se sabe as razões que levaram a esta troca de dieta. Mas o fato é que um ancestral comum ao grupo abandonou a voracidade carnívora característica dos crocodilianos para sobreviver à base de uma dieta onívora ou parcialmente herbívora. Seus descendentes se espalharam pelo centro-sul da América do Sul, da Bolívia à Argentina, evoluindo em uma dúzia de espécies já identificadas. O Llanosuchus tamaensis encontrado na Argentina é apenas o exemplo mais recente.
A maior diversidade de notossúquios avançados é encontrada no Estado de São Paulo, onde foram achadas sete espécies que adotaram uma dieta onívora – ou parcialmente herbívora. Eram eles o Caipirasuchus paulistanus, o C. Montealtensis e o Morrinhosuchus, todos achados em Monte Alto; o Adamantinasuchus, de Adamantina; o Caryonosuchus, de Presidente Prudente; e o Mariliasuchus, de Marília.
O sétimo membro desta turma é o Armadillosuchus, de General Salgado. Além da dentição diferenciada dos onívoros, ele possuía uma beleza bizarra: uma couraça óssea que lhe recobria totalmente o corpo à imagem dos tatus atuais – daí seu nome, pois armadillo é o nome em espanhol do nosso tatu-bola.
Os notossúquios avançados tinham outras duas características em comum, além da dentição. Nenhum deles era grande. Eram animais de porte médio, até dois metros no caso do Armadillosuchus, para pequeno, como o Llanosuchus, que não passava de 80 centímetros – a metade do tamanho de um iguana ou de um lagarto teiú.
Outra peculiaridade do grupo é o formato do crânio, que era muito curto – quase em forma de bico. Acredita-se que os notossúquios avançados empregavam seu “bico” para escavar barrancos e construir tocas, onde se abrigariam. “Crê-se que o Mariliasuchus cavava tocas”, diz Fiorelli. A evidência é a existência de algumas paleotocas nos mesmos extratos rochosos de onde saíram os fósseis do Mariliasuchus.
Encontrar uma nova espécie de notossúquio avançado no noroeste da Argentina tem um significado paleoambiental importante. “O que se vê no Cretáceo da província de La Rioja, no noroeste da Argentina, é muito similar ao panorama da Bacia Bauru,” diz Fiorelli.
Ao analisar os paleossolos do local onde estavam os restos do Llanosuchus, o sedimentólogo Giorgio Basilici deduziu que o clima há 80 milhões de anos era semiárido, apesar do elevado índice pluviométrico. “Chovia 700 milímetros por ano, o que é bastante. Isso significa que o local tinha vegetação. Mas a chuva devia ser concentrada numa única estação. Na maioria do ano, o clima era muito quente e seco.”
Muito quente, mas quão quente? No Cretáceo havia um efeito estufa pronunciado, explica Basilici. “Provavelmente, deve ter sido comum as temperaturas passarem dos 50 graus centígrados e chegar até 60 graus, na época mais quente e seca do ano.”
Os indicadores dessa estiagem estão, entre outros fatores, nos sinais de evaporação registrados no paleossolo, na abundância de nódulos de carbonato de cálcio (CaCO3). “Isto é sinal de aridez. O local teria sido coberto com uma vegetação adaptada às condições de aridez. Encontramos marcas de raízes fósseis com um diâmetro de até 40 centímetros, que atingiam até 10 metros de profundidade da superfície do solo. Eram assim compridas para buscar a água armazenada no subsolo. Eu diria que o clima daquela região argentina há 80 milhões de anos era parecido com uma caatinga, pontilhada aqui e ali por árvores e arbustos esparsos e, provavelmente, gramíneas.”
Os crocodilos do Sul eram bem adaptados ao clima árido e semiárido do final do Cretáceo. Não se sabe se isso contribuiu para o fato de eles terem conseguido sobreviver à grande extinção que pôs fim à linhagem dos grandes dinossauros (à exceção das aves), há 65 milhões de anos. Os notossúquios, porém, não chegaram aos nossos dias. “A última espécie conhecida desapareceu no Mioceno”, diz Fiorelli. Faz cerca de 15 milhões de anos. Foi o fim da nobre linhagem dos crocodilos terrestres do Gondwana.
O artigo de Fiorelli e outros, A new Late Cretaceous crocodyliform from the western margin of Gondwana (La Rioja Province, Argentina), publicado na Cretaceous Research 60: 194-209 pode ser lido no endereço: http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0195667115301270.
Agência FAPESP