Muito embora os levantamentos mais recentes apontem queda na incidência de novos casos de malária fora da região amazônica, o combate à proliferação do mosquito transmissor deve andar pari passu na busca de novos medicamentos e tratamentos. Daí a importância da pesquisa desenvolvida pela etnobotânica Carolina Weber Kffuri, pós-doutoranda no Departamento de Horticultura da Faculdade de Ciências Agronômicas da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Botucatu, com supervisão de Lin Chau Ming. O trabalho, que teve apoio da FAPESP, foi publicado no Journal of Ethnopharmacology.
Carolina Kffuri passou um ano e meio na região do alto rio Negro, no Amazonas, entre 2010 e 2012, período em que conviveu com moradores e indígenas da região. Essa convivência permitiu que ela conhecesse a realidade da malária no local, assim como as plantas da região usadas pela medicina tradicional no tratamento da doença. Ela documentou o uso de 46 espécies de plantas, das quais apenas 18 já tinham sido estudadas por suas propriedades antimaláricas; 26 delas eram desconhecidas da ciência. Seus efeitos no combate da doença nunca foram investigados. São 26 espécies com potencial para o desenvolvimento de novas drogas e que ninguém nunca tinha ouvido falar – exceto os índios.
A pesquisadora iniciou seu trabalho com uma viagem a São Gabriel da Cachoeira, no noroeste do Estado do Amazonas, para apresentar o projeto às comunidades indígenas. De acordo com Carolina Kffuri, os líderes das comunidades entenderam e aceitaram participar do projeto. Ela planejara começar o estudo em poucos meses, mas foi preciso aguardar que o projeto fosse aprovado pelo Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN).
Por fim, em setembro de 2013, a pesquisa de campo deslanchou com cinco comunidades indígenas: Cunuri e Tapira Ponta, ambas no rio Uaupés, um afluente do rio Negro; Ilha das Flores, na confluência do Uaupés com o Negro; São Jorge, no rio Curicuriari, outro afluente do Negro; e a comunidade Curicuriari, na confluência do Curicuriari com o Negro. As comunidades são multiétnicas: Tukano, Desano, Baré, Tariano, Piratapuia, Arapaço, Baníua (Baniwa), Hupda, Curripaco e Bará.
Foram entrevistados, ao todo, 89 índios, 49 homens e 40 mulheres, cujas idades variavam dos 22 até os 74 anos. A todos ela indagou, por exemplo, “quais plantas você usa para tratar malária e quais você conhece ou ouviu falar?”. A maioria dos entrevistados respondeu em português, espanhol e em outros dez idiomas nativos.
As respostas permitiram identificar as plantas usadas no tratamento da malária, as formas de preparo e a posologia. Carolina Kffuri descobriu onde aquelas 46 plantas crescem e quais partes são usadas como remédio. Em todo o trabalho, a pesquisadora contou com a ajuda de Moisés Ahkáutó Lopes, um estudante da etnia tukano da comunidade Cunuri, nas entrevistas, na coleta do material e na tradução e transcrição dos nomes na língua Tukano.
Remédio amargo
Entre as 46 plantas utilizadas pelos índios contra a malária, “a maioria era composta por árvores grandes e raízes, principalmente de herbáceas”, diz Carolina Kffuri. Das árvores geralmente se retira a casca, mas também são usados raízes, folhas, frutos, a planta inteira, caules e sementes. O preparo dos remédios envolve cozimento de cascas, fervura de chás, maceramento de folhas e sementes e queima de plantas até obter cinzas utilizadas in natura em banhos de vapor. Pelo menos em um caso as plantas são administradas na forma de enemas.
“A dose normal é de um copo, três vezes ao dia, de manhã, ao meio-dia e à tarde”, diz a pesquisadora. “As plantas usadas para banho são tóxicas. Neste caso, a dose é de uma colher na água do banho, duas vezes por dia. Utilizam também um cipó muito amarelo, que é uma das características das plantas usadas contra a malária; a outra é o amargor. São remédios muito amargos.”
De acordo com a pesquisadora, “os índios estão deixando de usar os remédios tradicionais. Eles começam a preferir o remédio industrializado dos brancos. São drogas cuja ação é mais rápida, mas, segundo os entrevistados, têm mais efeitos colaterais”.
As 46 plantas documentadas na pesquisa crescem em vários ambientes: perto das casas, dentro da floresta, em terra firme ou em igapós, e em terrenos baixos, próximos aos rios e frequentemente inundados. Apenas uma espécie é endêmica da região, a tachia, ou canela-de-veado.
Segundo Carolina Kffuri, 26 espécies jamais tinham sido estudadas em laboratório. “ Não conseguimos determinar a espécie de outras duas. São do gênero Swartzia e Piper. Não há nenhum registro publicado. Provavelmente são espécies novas”, revela.
De todas as plantas citadas, sete tiveram um alto consenso de uso contra a malária, a saber: carapanaúba (Aspidosperma schultesii), saracura-mirá (Ampelozizyphus amazonicus), açaí-da-catinga (Euterpe catinga), açaí-do-mato (E. Precatoria), camapu (Physalis angulata); acuti-cabari ou cabari-de-cotia (Swartzia argentea) e o coco-da-bahia (Cocos nucifera).
Cinco delas já eram conhecidas da ciência por suas propriedades antimaláricas. Até a publicação da pesquisa nada se conhecia sobre a ação antimalárica do açaí-da-catinga e do cabari-de-cotia.
Uma questão suscitada pelas respostas dos índios intrigou a pesquisadora: eles dizem que alguns remédios não servem para todas as pessoas. Depende do sangue, dizem os índios. “Teria isto a ver com o tipo sanguíneo do doente?”, indaga Carolina Kffuri.
Cabe aos bioquímicos, farmacologistas e à indústria farmacêutica a tarefa de verificar se as plantas têm de fato emprego no combate à malária e se é possível extrair delas princípios ativos que resultem em novos medicamentos. Quanto à pesquisadora, ela pretende retornar à Amazônia com um novo projeto: identificar quais são as plantas da floresta usadas na alimentação tradicional das comunidades indígenas. A permissão do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), que autoriza o acesso ao conhecimento tradicional indígena, já foi aprovada.
O artigo de Carolina Kffuri, Moisés Ahkáutó Lopes e outros, Antimalarial plants used by indigenous people of the Upper Rio Negro in Amazonas, Brazil, publicado no Journal of Ethnopharmacology, pode ser acessado no endereço www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0378874115302506.
Agência FAPESP