É o que explicam os astrofísicos Rafael Santucci e Vinícius Placco, que participaram do estudo internacional publicado no The Astrophysical Journal Letters.
O artigo foi publicado com apoio da FAPESP. Santucci é doutorando no Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo, sob orientação da professora Silvia Rossi. Placco é professor na University of Notre Dame, nos Estados Unidos, e estudou o halo galáctico também com apoio da FAPESP.
Para entender o significado da pesquisa é preciso imaginar o formato da Via Láctea. Trata-se de uma galáxia em espiral, cujos braços se espraiam a partir do núcleo, formando um disco de 100 mil anos-luz de diâmetro. Em torno do núcleo galáctico, a densidade estelar, ou seja, a quantidade de estrelas próximas umas das outras, é grande.
A essa concentração de estrelas que orbitam próximas ao núcleo dá-se o nome de bojo galáctico. Afastando-se do núcleo, a quantidade de estrelas cai e, por consequência, o disco galáctico afina até chegar às bordas, na periferia da galáxia, onde a densidade estelar é rarefeita.
Mas isso é uma pequena parte da galáxia, a parte visível à maioria dos observatórios astronômicos. O disco da Via Láctea está envolto pelo halo galáctico. Trata-se de um volume de espaço esférico muitas vezes maior que o disco.
As dimensões do halo galáctico são da ordem de várias centenas de milhares de anos-luz. Ele é composto principalmente por matéria escura, uma matéria invisível e desconhecida que faz com que a galáxia mantenha a sua coesão para não se estilhaçar. Mas o halo também é composto por nuvens de hidrogênio – e por estrelas.
As estrelas do halo podem ser divididas em três conjuntos. No primeiro, estão agrupadas as dezenas de milhares em densos aglomerados esféricos chamados aglomerados globulares.
Conhece-se cerca de 150 aglomerados orbitando a Via Láctea, mas há também dois outros conjuntos estelares. Existem estrelas que foram parar no halo porque sua velocidade de escape fez com que se desgarrassem do disco galáctico.
E há igualmente aquelas que originalmente pertenciam a outras galáxias, pequenas, que acabaram canibalizadas pela Via Láctea há bilhões de anos. São estes dois últimos conjuntos de estrelas os alvos de investigação do trabalho recém-publicado. Mais especificamente, a pesquisa envolveu um tipo particular de estrelas do halo, as chamadas “estrelas azuis do ramo horizontal”.
“São estrelas gigantes, em média dez vezes maiores que o Sol, que se encontram a caminho do fim da sua vida. Aquelas estrelas já passaram da sua fase jovem, quando queimavam hidrogênio. Estão agora na fase avançada, fundindo hélio e carbono”, explicou Santucci.
Quando esse suprimento findar, elas encolherão e se tornarão anãs brancas, que é o mesmo futuro do Sol. Os pesquisadores pretendiam reunir um grande número dessas estrelas azuis do ramo horizontal para analisar a cor de sua luz. Com isso, talvez fosse possível estimar a sua idade.
O cálculo da idade de uma estrela é feito a partir da combinação da análise da sua cor e também da assinatura química de sua luz. “As cores das estrelas estão relacionadas com suas temperaturas, que, por sua vez, estão relacionadas com suas massas, sendo que estas regem seus tempos de vida”, disse Placco.
Santucci observa que, no caso específico desta pesquisa, “as variações de idade que descrevemos no trabalho foram baseadas nas cores”.
Quanto às cores das estrelas, na maioria dos casos estrelas jovens e grandes são brancas ou azuis e estrelas de porte médio são amarelas ou laranjas. Estrelas velhas, caminhando para o fim da vida, se tornam gigantes vermelhas, para na senilidade virarem anãs brancas. “Mas as estrelas azuis do ramo horizontal são uma exceção à regra. Elas mantêm a cor azul mesmo no fim da vida”, disse Santucci.
Segunda geração estelar
Espectroscopia é a análise da assinatura química da luz das estrelas. Quando a luz produzida no núcleo da estrela escapa, passando por sua atmosfera, qualquer elemento químico presente na atmosfera deixa sua presença indelevelmente marcada para sempre no espectro daquela luz. Quando os astrônomos registram a luz de uma estrela distante, uma das primeiras coisas que fazem é analisar seu espectro.
Quando o Universo começou sua expansão, havia somente três elementos químicos, o hidrogênio, o hélio e uma pequena fração de lítio. Todos os demais elementos foram forjados no coração da primeira geração de estrelas, que terminou a vida em cataclísmicas explosões chamadas supernovas. Foram os detritos daquelas explosões que semearam o meio interestelar com todos os elementos da tabela periódica.
Essa semeadura prosseguiu e prossegue até hoje, com as supernovas das gerações subsequentes de estrelas. Acredita-se que o Sol, devido à sua composição química, seja produto da evolução de diversas gerações de estrelas. Em sua atmosfera existe uma grande variedade de elementos químicos.
Ao analisar o espectro da luz das estrelas, se os astrofísicos estão à caça de astros muito antigos, irão procurar aqueles cuja assinatura química indique a presença de alguns poucos elementos químicos além de hidrogênio, hélio e lítio, notadamente o carbono e o nitrogênio, entre outros.
Quando os cientistas encontram astros com tal composição, é um forte indicativo de que se trata de estrelas muito antigas, pertencentes à segunda geração estelar do Universo. “Elas podem ser tão ou mais antigas do que a Via Láctea”, afirmou Placco.
Um primeiro trabalho do gênero foi publicado em 1991. Nele, a partir do estudo de 150 estrelas, procurou-se aferir sua distância e idade. Quanto à idade, não foram bem-sucedidos. A qualidade dos dados à disposição à época ainda era rala. “Vinte e quatro anos depois, o trabalho do Rafael (Santucci) foi fazer uma nova seleção de estrelas”, contou Placco.
Para tanto, Santucci mergulhou na gigantesca base de dados do projeto Sloan Digital Sky Survey (SDSS), nos Estados Unidos, cuja meta é catalogar centenas de milhares de galáxias distantes. “Mas como as estrelas da Via Láctea estão no meio do caminho, um subproduto importante do SDSS foi descobrir muitos milhares de estrelas no halo galáctico”, disse Santucci.
Ele vasculhou nos arquivos do SDSS e conseguiu pinçar 4.700 estrelas. Foi a partir do estudo dessas estrelas que se criou o primeiro mapa das estrelas mais antigas da Via Láctea. “A quantidade e a qualidade dos dados hoje à disposição são muito maiores e melhores do que aquelas do artigo de 1991”, disse Placco.
Com o mapa dos dois hemisférios (acima e abaixo do disco galáctico) da Via Láctea, foi possível descobrir o seguinte: as estrelas mais antigas se formaram antes ou concomitantemente “ao colapso gravitacional da imensa nuvem de gás que formou as estrelas do centro da Via Láctea”, segundo explicou Santucci.
“Nosso mapa mostra que os objetos mais próximos do centro da galáxia têm uma idade de cerca de 13 bilhões de anos”, disse.
A partir de então, as estrelas continuaram se formando, em ordem cronológica do centro para fora. “Nosso estudo veio confirmar antigas teorias da evolução galáctica, que postulavam que as estrelas mais antigas teriam se formado no centro e as mais jovens progressivamente em direção ao halo. Ninguém tinha mostrado isto antes”, disse Santucci.
Como esse resultado surpreendente não foi antecipado, os autores estão escrevendo um novo artigo para submeter à revista Science. “Trata-se de um mapa muito maior e mais preciso, feito a partir de uma amostra com 100 mil estrelas”, antecipou Santucci.
Uma evidência da originalidade da pesquisa dos brasileiros está no trabalho da concorrência acadêmica. Na primeira semana de janeiro, em reunião da Associação Americana de Astronomia na Flórida, foi apresentado outro mapeamento das idades das estrelas na Via Láctea, desta vez baseado em uma amostra de 70 mil estrelas gigantes vermelhas.
O foco não foi o halo, mas o disco galáctico. O trabalho confirmou o esperado quanto ao crescimento da galáxia: começou no meio e cresceu para fora. A prova é a abundância de estrelas antigas no meio do disco, segundo Melissa Ness, do Instituto Max Planck de Astronomia, na Alemanha.
O artigo Chronography of the Milky Way's Halo System with Field Blue Horizontal-Branch Stars (doi:10.1088/2041-8205/813/1/L16), de Rafael Santucci, Vinicius Placco e outros, pode ser lido em http://iopscience.iop.org/article/10.1088/2041-8205/813/1/L16.
Agência FAPESP