Em entrevista exclusiva ao Boletim FAPERJ, a biólogo Denise Valle – pesquisadora do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) e especialista no estudo do mosquito Aedes aegypti – fala sobre a rápida disseminação dos novos casos dessas doenças e das estratégias que vêm sendo travadas pelo Ministério da Saúde e por pesquisadores de todo o País. Desde os anos 2000, a FAPERJ vem apoiando, por meio de editais, programas especiais e auxílios, diversas pesquisas voltadas para o controle das doenças transmitidas pelo Aedes aegypti.
Denise foi a idealizadora da iniciativa "10 minutos contra a dengue", adotada pelo governo do estado como campanha pública de saúde em 2011 e em vigor até hoje. Entre os anos de 2009 e 2012, ela coordenou a Rede Dengue FAPERJ/CNPq, projeto voltado a elaborar novas estratégias de vigilância e controle do mosquito. Também com a apoio da FAPERJ, criou o site Aula Dengue, que traz diversas informações sobre a doença e sobre seu vetor, incluindo a questão dos criadouros do mosquito, assim como os mitos e verdades sobre a doença. Pelo site, a equipe do IOC/Fiocruz recebe semanalmente vários pedidos de profissionais de saúde e de professores de escolas públicas estaduais, solicitando cópias dessas videoaulas. Confira a entrevista:
Boletim FAPERJ – A senhora vem pesquisando o tema da dengue há muitos anos. Fomos surpreendidos não apenas com o avanço da dengue, mas também, mais recentemente, com a chegada de novas doenças, como a chikungunya e o zika vírus?
Denise Valle – Não trabalho diretamente com o vírus da dengue, mas com seu vetor, o Aedes aegypti. Procuramos identificar alternativas de vigilância e de controle do mosquito. Já trabalhei muito com o monitoramento de sua resistência a inseticidas; hoje, tenho me dedicado principalmente à sensibilização da população para as práticas de prevenção.
A disseminação do chikungunya pelo território brasileiro já era esperada, devido ao surto da doença que aconteceu em dezembro de 2013 em ilhas do Caribe, muito próximas a nós. Na prática, seguindo diretrizes da Organização Mundial de Saúde(OMS), todo o continente já estava em alerta para a entrada do vírus. Pouco tempo depois, em setembro de 2014, a transmissão autóctone, ou seja, de contaminação local, foi identificada no Brasil. Era de conhecimento dos especialistas que as pessoas acometidas por chikungunya manifestavam sintomas extremamente debilitantes. Isso ainda acontece.
Em relação ao vírus zika, pesquisadores, gestores e toda a população brasileira foram, de certa forma, surpreendidos não somente por sua rápida disseminação, mas também pelas consequências que ele vem causando em gestantes e bebês. O vírus foi identificado pela primeira vez no País em maio deste ano. Até então, o que se sabia sobre o zika era apenas que poucas pessoas desenvolviam sintomas, e que estes eram brandos e efêmeros.
Outro aspecto curioso é que, apesar de o vírus zika ser muito pouco conhecido – exatamente porque nunca se mostrou como uma ameaça de fato –, é sabido que seu tempo de incubação no Aedes aegypti é parecido com o do vírus dengue, em torno de 10 dias. Isso significa que, uma vez infectado, o mosquito demora 10 dias até estar apto a transmitir o vírus zika ou a dengue para alguém. Este tempo é bem menor para a chikungunya, que acontece em torno de três dias. Ou seja, esperávamos que a disseminação de chikungunya fosse muito mais rápida que a de zika.
Reportagem publicada no jornal O Globo na semana passada afirma que o Aedes aegypti foi identificado como capaz de transmitir mais de 100 vírus, e que controlá-lo seria a única maneira de prevenir o zika vírus. A reportagem ainda cita outras doenças em que o mosquito é o vetor de vírus presentes na Amazônia brasileira, como o oropouche, mayaro e encefalite equina. Podemos ter outras surpresas no correr dos próximos meses?
Aedes aegypti é um mosquito essencialmente urbano, tem hábitos domésticos, é oportunista e tem grande capacidade de adaptação. Além disso, tem se mostrado um vetor competente para vários parasitas. Por outro lado, há uma série de organismos que em geral ficam confinados em áreas silvestres. Com os vírus não é diferente. Os casos do zika e do chikungunya, por exemplo, são bem ilustrativos. Ambos foram identificados em áreas rurais da África por volta dos anos 1950. Até o começo deste século 21, ambos permaneceram nesta condição, restritos à África, e por vezes, à Ásia. Fora desses locais, os registros são muito recentes: os surtos de chikungunya datam de 2005, no Oceano Índico, e os primeiros casos de zika ocorreram em 2007, na Micronésia.
É possível que existam outros vírus silvestres? Certamente que sim. É possível que estes vírus também sejam veiculados por Aedes? Em teoria, e para alguns, sim. Com a globalização, com a disseminação do homem por territórios cada vez mais vastos, estamos colocando em contato organismos que provavelmente nunca se encontrariam.
Este cenário nos mostra, de forma inequívoca, que, sim, na perspectiva do homem, das aglomerações urbanas, o controle do mosquito Aedes aegypti é a maneira mais eficaz de prevenir o propagação desses vírus causadores de diferentes doenças.
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) anunciou, nos últimos dias, a liberação da última fase de testes da vacina contra a dengue, prevista para o ano que vem. Com a chegada do chicungunya e da zika, vamos precisar, igualmente, pensar numa vacina para combatê-las? Há alguma possibilidade de uma mesma vacina servir para o controle das três doenças?
Sobre a possibilidade de uma mesma vacina servir para as três doenças, não posso opinar como especialista, apenas de forma teórica e genérica. Em relação às vacinas contra o vírus da dengue, atualmente em fase de liberação para comercialização (Sanofi-Pasteur) ou para testes de fase 3 (Butantan), gostaria de saber mais a respeito de seus efeitos, principalmente sobre o vírus zika que, assim como o da dengue, é um flavivírus. Avalio que é importante saber se essas vacinas protegem também contra o vírus zika ou se, ao contrário, teriam o potencial de exacerbar sua manifestação. Ou ainda saber se não há qualquer reação cruzada.
No entanto, além dessas questões específicas, esta é uma oportunidade de se refletir sobre o tipo de vigilância e de controle que queremos. Em última análise, sobre o tipo de saúde que almejamos. É claro que podemos mobilizar grande parte da comunidade científica para desenvolver kits de diagnóstico, vacinas, medicamentos que minimizem os sintomas de cada um desses vírus. Mas será que, com estas ações, não estamos apenas confinando o conceito de saúde à "ausência de doença"? Além disso, até que ponto este tipo de foco da academia não estimula um viés assistencialista – e mercantilista – da saúde?
A vacina é importante, assim como outras abordagens biomédicas e tecnológicas. Porém, também sabemos que a vacina não será a "bala mágica" que nos livrará da dengue, ou dos outros agravos transmitidos pelo Aedes aegypti. Contra ameaças complexas, iniciativas múltiplas. Neste caso, o ideal é que possamos atuar de forma intersetorial e interdisciplinar na vigilância e no controle. E, vale adicionar, agregando esforços das várias vertentes da sociedade: população, gestores, pesquisadores e mídia.
Cartum da época sobre a Revolta da Vacina (Foto: Arquivo Fiocruz)
Projeto desenvolvido na Fiocruz, em parceria com o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), propunha a disseminação de Aedes infectados com a bactéria Wolbachia, que, quando inserida no Aedes aegypti, é capaz de reduzir a transmissão da dengue. Alguns testes já teriam sido feitos em Tubiacanga, bairro da Ilha do Governador. A Fundação pretende retomar esses testes em 2016?
A iniciativa a que você se refere é o projeto Eliminar a Dengue: Desafio Brasil, que estuda o uso da Wolbachia como uma forma natural, segura e autossustentável para o controle da dengue. Participam os bairros de Tubiacanga, na Ilha do Governador, na cidade do Rio, e de Jurujuba, em Niterói. Países como Austrália, Vietnã, Indonésia e Colômbia também estão estudando esta abordagem inovadora.
No entanto, é importante ter em mente que a Wolbachia deve ser vista como uma ferramenta complementar de controle da dengue, que se somaria, no futuro, à tradicional forma de eliminação de criadouros, que deve ser praticada por todos.
O número de casos de microcefalia no País aumentou rapidamente nas últimas semanas. Vários estados estão em alerta e diversas medidas já foram adotadas a fim de controlar esse surto. Como especialista em dengue, como a senhora avalia a situação?
Em situações de surto, todas as ferramentas disponíveis devem ser utilizadas. Isso inclui, no nível operacional, campanhas de sensibilização, Exército nas ruas colaborando com a logística do controle mecânico e mesmo a utilização de repelentes, como proteção individual, e inseticidas em pontos estratégicos. A academia também está extremamente mobilizada, levantando muitas questões, promovendo seminários, discussões, colaborações e articulações em rede na busca de soluções novas, para um problema que é novo.
Assim como o vírus da dengue e outros transmitidos por Aedes aegypti extrapolam a esfera da saúde, é importante pensar em soluções que não sejam meramente técnicas, tecnológicas. Afinal, muito se ouve que o mosquito é o responsável pelas epidemias. Mas o que dizer, na esfera pública, do que está sendo feito para solucionar de forma definitiva as questões do acesso universal ao saneamento, do descarte de lixo e do fornecimento regular de água, por exemplo? Se não tivéssemos estes gargalos, certamente a convivência com o Aedes aegypti seria, no mínimo, mais amena... E, o que dizer, no âmbito privado, de eliminar e manter as residências livres de focos? Esta não é uma questão tecnológica, mas de conduta. Como lidar com a distância entre o que as pessoas sabem sobre controle do mosquito e o que efetivamente fazem para controlá-lo, o famoso know-do gap?
Ainda na esfera privada, nessas épocas de surto, há outro aspecto a considerar, o pânico coletivo, que ocupa e é alimentado por fração significativa da mídia. Apenas para dar um exemplo: repelentes, sobre os quais muito se fala hoje, são um elemento de proteção individual – e temporário. Não se deve atribuir-lhes irrestrita sensação de segurança.
Nas últimas semanas, diversas reportagens, publicadas nos principais jornais do País, lembraram o episódio da Revolta da Vacina, no início do século XX. Na ocasião, Oswaldo Cruz conseguiu sensibilizar as autoridades para que o Congresso Nacional aprovasse a Lei da Vacinação Obrigatória, feita com a ajuda do Exército, que enfrentou resistência de parte da população. Vamos precisar tomar medidas mais drásticas se quisermos vencer o Aedes? Em que medida o combate ao mosquito depende efetivamente da população, como afirmam as autoridades?
É preciso levar em conta que hoje estamos em um contexto muito distinto da época da Revolta da Vacina, ocorrido há um século. Nossa população – e a de todo o planeta – é muito maior e muito mais urbana. As variadas formas de transporte encurtaram enormemente as distâncias; no caso do Aedes aegypti isso se traduz, no Brasil, por reiteradas reinfestações passivas, a partir de múltiplos pontos de entrada. Ou seja, mesmo que conseguíssemos erradicar novamente o vetor, manter esta condição seria impossível. Por isso o conceito utilizado atualmente é "controle".
Com relação às medidas drásticas, não considero que a meta seja "vencer o Aedes". O "inimigo", se é que existe um inimigo concreto, é a desorganização dos espaços urbanos, a desigualdade das condições que garantem a cidadania das pessoas – e não me refiro apenas a saneamento e fornecimento de água, mas também ao acesso à educação que estimule a responsabilidade social de cada um.
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Assessoria de Comunicação FAPERJ