A pesquisa foi realizada no âmbito do Centro de Pesquisas sobre o Genoma Humano e Células-tronco (CEGH-CEL), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPIDs) apoiados pela FAPESP. O artigo com os resultados foi publicado ontem (12/11) na revista Cell. No mesmo dia, o site da revista Nature publicou reportagem sobre o assunto.
“Todas as terapias gênicas testadas até agora, com pouco sucesso, tinham como alvo o gene codificador da proteína distrofina. Nós estamos apresentando uma abordagem diferente, que abre um leque de novas possibilidades”, afirmou a professora do IB-USP Mayana Zatz e coordenadora do CECH-CEL.
A distrofia muscular de Duchenne, explicou a pesquisadora, é a forma mais comum de distrofia muscular e também a que evolui mais rapidamente, afetando apenas pessoas do sexo masculino. Em decorrência de uma mutação – geralmente herdada – no gene que codifica a proteína distrofina, os portadores sofrem de ausência total dessa molécula essencial para a saúde dos músculos.
“A distrofina mantém a integridade da membrana que envolve as células musculares. Quando ela está ausente, é como ter uma capa furada: proteínas importantes saem do tecido muscular e caem na circulação. Por outro lado, substâncias que deveriam ficar do lado de fora, como o cálcio, conseguem entrar”, explicou.
Não apenas os músculos esqueléticos são afetados, mas também o coração e o diafragma. Em geral, os meninos começam a apresentar problemas na marcha entre os 3 e os 5 anos de idade. Entre 10 e 12 anos já estão dependentes de cadeira de rodas.
“Sem cuidados especiais os portadores não chegam aos 20 anos de idade. Hoje, com auxílio de aparelhos respiratórios, podem passar dos 40”, disse Zatz.
Nos últimos 15 anos, o grupo do CEGH-CEL tem realizado estudos em animais portadores de distrofia muscular para ampliar o entendimento sobre a doença, como, por exemplo, os cachorros da raça Golden Retriever que nascem com mutação no gene da distrofina e desenvolvem um quadro clínico semelhante ao de portadores de Duchenne. A maioria dos cães distróficos não passa dos 2 anos de idade.
“Mas há algum tempo identificamos um cachorro que, apesar da ausência total de distrofina, apresentava um quadro muito mais leve da doença. Ele viveu até os 11 anos de idade, o que é considerado normal para a raça, e deixou um descendente também com a mutação que já está com 9 anos de idade”, contou Zatz.
Os cachorros conhecidos como Ringo e Suflair passaram a ser o centro das atenções nas pesquisas do grupo, em particular do estudo da então aluna de doutorado Natássia Vieira. Em parceria com Sergio Verjovski-Almeida, professor do Instituto de Química da USP, Vieira comparou a expressão dos genes em cachorro sadios, nos portadores de distrofia severa e nos dois animais com a forma mais branda da doença.
“Achamos alguns genes candidatos e então, graças à parceria com a equipe do professor Louis Kunkel (Harvard Medical School) e da professora Kerstin Lindblad-Toh (Broad Institute), ambos nos Estados Unidos, foi possível combinar os resultados com dados genéticos. Vimos que existe uma região do genoma que está associada ao quadro clínico benigno e que um gene nesta região, o Jagged1, está com expressão aumentada no Ringo e no Suflair. Essa poderia ser a explicação para o quadro mais benigno da doença”, explicou Vieira, primeira autora do artigo publicado na Cell.
Grupo do CEGH-CEL/CEPID identifica gene-alvo contra distrofia muscular de Duchenne
https://youtu.be/UBLQPYWXACQ
Prova de conceito
Para confirmar se, de fato, modificar a expressão de Jagged1 poderia alterar a gravidade da doença, Vieira conduziu experimentos com um modelo de peixe-zebra (Danio rerio), popularmente conhecido como paulistinha, espécie cujo genoma é quase 70% semelhante ao humano.
O trabalho foi feito no laboratório de Kunkel, descobridor do gene da distrofina e atualmente pesquisador da Harvard Medical School.
“O peixe-zebra modelo também apresenta uma mutação no gene da distrofina e isso faz como que ele tenha uma fraqueza muscular e não consiga se movimentar. Quando nós aumentamos a expressão de Jagged1 nos peixes sem distrofina, observamos que 75% deles não desenvolveram o fenótipo distrófico”, contou Zatz.
A superexpressão nos peixes foi induzida com uma injeção do RNA mensageiro da proteína Jagged1 nos embriões.
De acordo com Zatz, o passo seguinte é tentar reproduzir o experimento em um modelo de camundongo sem distrofina e que também possui uma outra mutação em um gene que codifica a proteína utrofina.
“Esses roedores costumam viver apenas 4 meses. Se conseguirmos aumentar a sobrevida com esse tratamento será um sinal muito positivo”, disse a pesquisadora.
Nova estratégia
Segundo Zatz, há uma forma mais branda da doença em humanos conhecida como distrofia muscular de Becker. Os portadores de uma mutação diferente no mesmo gene produzem distrofina, mas em quantidade menor que os indivíduos sadios. Nesses casos, o quadro clínico é mais ameno e as dificuldades na marcha costumam surgir após os 20 anos de idade.
“Quanto maior é a produção de distrofina, mais leve é o quadro clínico. Por esse motivo as terapias gênicas tentadas até agora tinham como alvo a distrofina. Nós mostramos que há outro caminho, talvez a proteína Jagged1 não seja a resposta, mas uma outra da mesma via, que poderá ser identificada em estudos futuros”, concluiu.
Para Kunkel, uma possibilidade seria desenvolver uma droga capaz de aumentar a produção da proteína Jagged1 e, assim, melhorar a qualidade de vida do paciente. “Mas não acredito que uma terapia gênica focada no Jagged1 será algo que vai substituir a terapia gênica focada no gene da distrofina. Seria um possível complemento”, disse em entrevista à Agência FAPESP.
O pesquisador afirmou ainda que pretende manter a colaboração com o grupo brasileiro para testar novas drogas capazes de aumentar a expressão de Jagged1.
“Este projeto realmente mostra como a pesquisa interdisciplinar pode ser útil e impulsionar a ciência para a frente”, disse Lindblad-Toh.
O artigo Jagged 1 Rescues the Duchenne Muscular Dystrophy Phenotype (doi: http://dx.doi.org/10.1016/j.cell.2015.10.049), de Natassia M. Vieira e outros, está disponível para assinantes da Cell em: www.cell.com/cell/abstract/S0092-8674(15)01405-1.
O Núcleo de Divulgação Científica da USP fez um site especial para a pesquisa, com textos, infográfico, fotos e vídeos de entrevistas com os autores do estudo: http://sites.usp.br/distrofia.
Agência FAPESP