“O tratamento hoje disponível, a reposição enzimática, precisa ser mantido a vida toda, é caro e não reverte os danos cognitivos, apenas retarda sua progressão. Uma opção seria o transplante de medula óssea, mas é difícil encontrar doador compatível e precisa ser realizado nos primeiros anos de vida. Nós estamos buscando um método de cura por terapia gênica e já conseguimos melhora em experimentos com camundongos”, disse Han.
A doença, explicou o pesquisador, é causada por mutações em um único gene que codifica a enzima alpha-L-iduronidase (IDUA), que junto com outras proteínas participa do processo de degradação de um polissacarídeo conhecido como glicosaminoglicano (GAG).
“O GAG é um dos componentes da matriz extracelular e desempenha papéis importantes dentro e fora da célula, entre eles a transdução de sinais. Mas, como qualquer outra macromolécula, GAG precisa eventualmente ser reciclado. A deficiência da enzima IDUA resulta em falha desse processo e o polissacarídeo se acumula nas células, afetando funções celulares e podendo levar à morte celular”, explicou Han.
Sem tratamento, os órgãos começam a aumentar de volume e a ter seu funcionamento comprometido – baço e fígado costumam ser os mais afetados, mas também coração, cérebro, articulações e ossos.
A principal terapia atualmente disponível é a reposição da enzima IDUA, que necessita ser feita semanalmente por via intravenosa no hospital. O custo anual para o Sistema Único de Saúde (SUS) é de mais de US$ 100 mil por paciente.
Os cientistas não sabem ao certo se a enzima recombinante consegue atravessar a barreira hematoencefálica – um conjunto de células endoteliais que protege o sistema nervoso central. Mas o fato é que o tratamento atual de reposição não consegue reverter os danos cerebrais. Além disso, alguns pacientes sofrem com fortes efeitos colaterais, pois desenvolvem resposta imunológica contra a infusão da enzima.
O que os pesquisadores liderados por Han e também outros grupos internacionais tentam fazer é encontrar um meio de inserir no genoma dos portadores de MPSI uma cópia funcional do gene IDUA, para que as próprias células do paciente passem a produzir a molécula de maneira sustentada.
Direto ao ponto
Duas estratégias estão sendo testadas em experimentos com camundongos feitos na Unifesp. Os animais modelo tiveram o gene IDUA silenciado e, portanto, desenvolveram um quadro semelhante ao de portadores de MPSI.
Em uma das linhas, o grupo isolou e modificou células-tronco mesenquimais da medula óssea de camundongos usando um vírus como vetor. Posteriormente, injetou o material no cérebro dos roedores.
“Nós retiramos o genoma viral e colocamos no lugar uma cópia do gene IDUA humano. Quando a célula é infectada por esse vírus modificado, o gene de interesse se integra em seu genoma e ela passa a produzir a enzima”, explicou Han.
A célula-tronco mesenquimal é um tipo peculiar de célula-tronco que costuma migrar para locais do corpo onde há inflamação, como é o caso dos tecidos que sofrem com o acúmulo de GAG. Embora não tenha a capacidade de se diferenciar em todos os tecidos do corpo, como faz a célula-tronco embrionária, é considerada interessante do ponto de vista terapêutico por ter propriedades anti-inflamatórias, antiapoptóticas (evitam a morte celular) e imunomoduladoras. Além disso, como todas as células-tronco, têm a capacidade de se autorrenovar.
As células modificadas foram injetadas no ventrículo esquerdo do cérebro dos roedores e, após dois meses, o desempenho cognitivo dos animais foi avaliado por meio de testes comportamentais.
“Observamos uma melhora significativa nas funções cognitivas em testes que avaliam a capacidade exploratória dos roedores. Nós acreditamos que qualquer tratamento para o cérebro tenha de ser feito de forma separada”, disse Han.
Análises do tecido cerebral revelaram que o tratamento promoveu uma redução significativa no nível de GAG em comparação ao grupo controle. No entanto, a produção da enzima IDUA não foi significativa nas amostras após o período de dois meses em que os animais foram observados.
“Restou uma quantidade pequena das células mesenquimais modificadas no tecido após esse período, mas foi possível observar que elas de fato migraram para o outro lado do cérebro, promovendo uma melhora generalizada”, disse Han.
Os resultados obtidos durante o doutoramento de Flávia Helena da Silva, sob a orientação de Han e da professora Nance Nardi, da Universidade Luterana do Brasil, foram divulgados em artigo na revista Genetic Vacines and Therapy.
Estímulo massivo
Em outra abordagem testada durante o mestrado de Roberta Sessa Stilhano Yamaguchi, com Bolsa da FAPESP, o gene da enzima IDUA humana foi inserido em um plasmídeo (uma molécula circular de DNA originária de bactéria).
“Optamos pelo plasmídeo visando o uso na clínica, por ser um vetor mais seguro que o vírus. Na engenharia genética do vetor usamos um gene do bacteriófago que codifica a enzima phiC31 recombinase, pois ela ajuda a integrar o gene de interesse no genoma da célula-alvo, para que a produção da enzima seja longa”, disse Han.
Uma grande quantidade de solução do plasmídeo – o equivalente a 10% da massa corpórea do camundongo – foi injetada em uma veia grossa existente na cauda do animal. A proposta desse método, conhecido como injeção hidrodinâmica, é que o DNA do vetor entre nas células do sangue por pressão hidrostática e, assim, se espalhe para as outras partes do corpo.
“Em humanos o método teria de ser um pouco diferente”, disse o pesquisador.
Testes mostraram que a produção da enzima que era praticamente nula nos animais modelo saltou para mil unidades por mililitro de sangue. No entanto, cerca de um mês depois da aplicação os valores já haviam retornado aos níveis iniciais. Os resultados foram publicados em artigo no The Journal of Gene Medicine.
“O problema é que o organismo dos camundongos identificou o plasmídeo como um organismo estranho e neutralizou a ação do tratamento por meio de geração de anticorpos contra a enzima IDUA humana e de silenciamento da expressão do gene por mecanismos epigenéticos, como por exemplo a adição de grupos metila à molécula de DNA (metilação do DNA). Agora, no laboratório, estamos tentando contornar esse problema por meio de engenharia genética”, contou Han.
Durante o mestrado de Priscila Keiko Matsumoto Martin, com apoio da FAPESP, o grupo tentou contornar a resposta imunológica usando células mesenquimais modificadas com um vetor plasmídeo contendo o gene da enzima IDUA e da enzima transposase, que também tem a capacidade de integrar o gene de interesse no genoma da célula hospedeira. “As células-tronco mesenquimais são conhecidas por sua ação imunossupressora e, dessa forma, esperávamos evitar a resposta imunológica. Mas a produção da enzima foi muito pequena. Descobrimos que as células mesenquimais não são um imunossupressor ideal para nosso caso, que está relacionado com a produção de anticorpos”, disse Han.
Os dados foram publicados na revista PLoS One e apresentados em setembro durante a 30ª Reunião Anual da Federação de Sociedades de Biologia Experimental (FeSBE), realizada na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP).
“Nosso próximo passo é aperfeiçoar o vetor usando um fragmento de DNA mais parecido com o de mamíferos para amenizar o problema do silenciamento epigenético. Em humanos, existe uma grande chance de a resposta imunológica ser menor, pois será produzida uma enzima da mesma espécie. Muitos pacientes com MPSI inclusive produzem IDUA defeituosa, ou seja, não é funcional. Mas o organismo já está habituado com essa proteína”, avaliou Han.
Agência FAPESP