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Quem tem problemas estomacais recorrentes conhece o omeprazol, medicamento receitado para tratar de gastrite e úlceras, entre outras disfunções digestivas. Usando técnicas genômicas, pesquisadores do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP), do Instituto Butantan e de outras instituições nacionais descobriram uma capacidade insuspeita para esse mesmo fármaco: potencializar a ação da droga normalmente utilizada contra o verme Schistosoma mansoni, causador da esquistossomose (ou barriga d’água, como é conhecida popularmente).
A descoberta, publicada na revista científica de acesso livre PLOS Neglected Tropical Diseases, ocorreu quando os pesquisadores se puseram a mapear o padrão de ativação dos genes do S. mansoni depois de os parasitas serem afetados por quantidades modestas de praziquantel, medicamento cuja administração aos pacientes, em uma única dose oral por ano, normalmente é suficiente para eliminar os vermes.

Entre os genes que pareciam estar associados à reação do esquistossomo contra a droga, havia diversas regiões do DNA cujos equivalentes em humanos estão ligados à ação de medicamentos conhecidos, e um dos mais interessantes da lista é justamente o omeprazol.

Sergio Verjovski-Almeida, professor no Departamento de Bioquímica do IQ-USP e coordenador do estudo, explica que a busca por fármacos que possam atuar em sinergia com o praziquantel deriva, paradoxalmente, do sucesso desse medicamento antiesquistossomose.

Como o praziquantel é a única droga usada em larga escala contra a doença, teme-se que, mais cedo ou mais tarde, apareçam linhagens do S. mansoni que sejam resistentes a ele, mais ou menos como ocorre na corrida armamentista entre antibióticos e cepas de bactérias.

“Ainda não se sabe ao certo se essa resistência já surgiu de forma significativa na natureza. Alguns possíveis casos de resistência talvez se devam apenas ao uso incorreto do praziquantel. Mas, de qualquer maneira, a preocupação existe”, conta Verjovski-Almeida.

O uso combinado de dois fármacos diferentes diminui muito essa possibilidade, já que o organismo do parasita precisaria ser “sortudo” o suficiente para carregar variações genéticas que o tornassem resistente a ambas as drogas.

Ao buscar novos “calcanhares de aquiles” do verme nos genes afetados pelo praziquantel, Verjovski-Almeida conta ter se inspirado, em parte, nos seus trabalhos com genômica de células do câncer.

“No câncer, quando se usa uma droga contra o tumor, é comum que rapidamente as células cancerosas sofram mutações que podem conferir resistência contra o tratamento, e as células com essas mutações logo produzem muitos clones. A ideia, então, é tentar entender essas redes de alterações genômicas”, explicou. “Essa é a vantagem da minha maluquice de trabalhar nessas duas coisas diferentes ao mesmo tempo”, brincou.

Machos, fêmeas e prótons

Para saber quais genes eram afetados pelo fármaco, a equipe obteve, em primeiro lugar, amostras do mRNA (RNA mensageiro) dos parasitas. O mRNA é a molécula que serve de intermediário entre a informação genética contida no DNA e os ribossomos, “fábricas” de proteínas que funcionam com base nas instruções trazidas pelo mRNA. Para ser mais exato, quanto mais cópias do mRNA correspondentes a determinado gene estão sendo produzidas pela célula, mais ativo está aquele gene.

Após esse passo inicial, as moléculas de mRNA serviram de “molde” para a produção de seus equivalentes na forma de DNA. Estas, por sua vez, foram adicionadas a um chip com milhares de “poços” nos quais estavam contidas cópias de trechos de genes conhecidos do S. mansoni.

A ideia por trás desse processo é simples: como o DNA é uma molécula conhecida por seus pares de bases complementares – a base A (adenina) só se liga com a base T (timina), a base C (citosina) só se liga com a G (guanina) –, a técnica promove a ligação dos trechos de genes previamente colocados no chip com os que estavam ativos nos parasitas vivos.

Como um marcador que pode ser identificado visualmente é adicionado aos “poços”, quanto mais frequente for o pareamento, mais visível será o marcador, portanto será possível inferir o nível de ativação de determinado gene.

Os pesquisadores aplicaram essa técnica para tentar identificar os genes afetados pelo praziquantel tanto em machos da espécie quanto em fêmeas – e, no caso destas últimas, foram avaliadas tanto as fêmeas que formavam um casal quanto as que ficaram sem seus machos.

Isso é importante porque o acasalamento da espécie é um fenômeno sui generis: a fêmea se instala dentro da cavidade corporal do macho, em um abraço perpétuo. “O uso do praziquantel pode desfazer esse elo – em geral, os machos morrem primeiro, provavelmente porque ficam mais diretamente expostos ao medicamento que está circulando na corrente sanguínea do paciente”, disse Verjovski-Almeida.

Todos esses fatores podem influenciar a dinâmica da doença e do tratamento. Considerando, por exemplo, os dois tipos diferentes de fêmeas, o praziquantel parece aumentar a ativação de certos genes nas S. mansoni acasaladas, enquanto o remédio faz mais ou menos os mesmos genes ficarem menos ativos nas fêmeas sem pares.

Apesar de tais diferenças, porém, os pesquisadores encontraram alguns genes afetados independentemente do sexo e “estado civil” dos vermes. Um dos quais mais os intrigaram é o SmATP1A2, cuja versão em seres humanos contém o código para a produção de uma enzima que facilita a liberação de ácido no estômago. Ou seja, é justamente o que o omeprazol evita nos pacientes com problemas gástricos, diminuindo a acidez estomacal.

“Quando vi essa informação, achei que o omeprazol não seria útil contra o S. mansoni porque o processo ocorreria no estômago, mas na realidade ele começa na corrente sanguínea, justamente onde estão os parasitas”, disse Verjovski-Almeida.

É claro que, no caso do verme, o gene provavelmente não tem nada a ver com a acidez estomacal, embora sua função não esteja clara. “O certo é que ele está ligado à reação do parasita contra o praziquantel”, disse o professor da USP.

Tanto é assim que, quando doses do praziquantel que não seriam suficientes para matar a maioria dos vermes foram combinadas com as de omeprazol, a mortalidade de machos aumentou oito vezes, enquanto a de fêmeas foi três vezes maior, mostraram experimentos in vitro.

O próximo passo é testar a combinação em modelos animais e, caso os resultados continuem a se mostrar encorajadores, tentar a mesma abordagem em pacientes humanos. A vantagem é que ambos os medicamentos são bem conhecidos e usados em pessoas há décadas, o que, em tese, facilitaria o seu uso combinado. “Poderíamos tentar primeiro um ensaio de toxicidade em pacientes”, exemplifica Verjovski-Almeida.

Além da equipe da USP, o estudo contou ainda com a participação de pesquisadores do Instituto Butantan, do Centro de Pesquisas René Rachou, da Fundação Oswaldo Cruz, em Belo Horizonte, e do Instituto Tecnológico Vale, em Belém. Verjovski-Almeida, inclusive, está prestes a se transferir para o Butantan, onde espera intensificar o lado aplicado dos estudos com o S. mansoni.

O artigo Synergy of Omeprazole and Praziquantel In Vitro Treatment against Schistosoma mansoni Adult Worms (doi: 10.1371/journal.pntd.0004086), de Sergio Verjovski-Almeida e outros, pode ser lido em: http://journals.plos.org/plosntds/article?id=10.1371/journal.pntd.0004086.

Agência FAPESP