O trabalho, que contou com a participação do brasileiro Israel Tojal da Silva, foi divulgado em artigo publicado na revista Cell.
O grupo liderado por Davide Robbiani e Michel Nussenzweig infectou camundongos com protozoários da espécie Plasmodium chabaudi, uma vez que os parasitas que causam malária em humanos não infectam roedores. Notaram que a doença fazia com que certas células de defesa se proliferassem mais rapidamente e expressassem níveis altos e sustentados de uma enzima chamada AID (Activation-induced cytidine deaminase, na sigla em inglês), que pode causar danos ao DNA.
“A enzima AID é responsável por gerar a diversidade biológica do sistema imune e, para isso, remodela o DNA de genes produtores de anticorpos. Fisiologicamente, ela induz mutações em uma região específica do genoma chamada IgH. Mas, em condições anormais, pode agir fora dessa região-alvo (off-targets), levando à quebra cromossômica e a translocações de genes”, explicou Silva, que participou do estudo ainda enquanto pesquisador associado na Rockefeller University. Atualmente, ele coordena o Laboratório de Biologia Computacional e Bioinformática do Centro Internacional de Pesquisa do A.C. Camargo Cancer Center e é membro adjunto da Rockefeller University.
Os pesquisadores infectaram com o parasita dois grupos de camundongos transgênicos. Ambos tiveram o gene supressor de tumor p53 silenciado nos linfócitos B para mimetizar uma mutação frequentemente encontrada em portadores de linfoma de Burkitt. Mas apenas um dos grupos expressava normalmente a enzima AID, enquanto o outro era deficiente.
Todos os roedores com AID funcional desenvolveram um tipo de linfoma caracterizado por rearranjos cromossômicos entre os genes c-myc e IgH similares ao observado nos casos humanos de linfoma de Burkitt.
No grupo com deficiência de AID, apenas um terço desenvolveu linfoma. No entanto, esses animais se mostraram muito mais suscetíveis a morrer de malária, o que sugere que a enzima é crucial na resposta imunológica contra o parasita.
Silva foi o responsável pelas análises de bioinformática que permitiram detectar e quantificar as translocações gênicas. Dentre os resultados, foi observado que as translocações ocorrem em todos os cromossomos, preferencialmente em regiões gênicas, e em genes altamente expressos.
“No modelo estudado, demonstramos que a infecção pelo parasita induz a uma instabilidade genômica generalizada, predispondo as células B a adquirirem translocações em genes-chave, incluindo o c-myc, o que reflete as características moleculares e fenotípicas do linfoma de Burkitt”, disse Silva.
Estudos futuros
Embora raro em âmbito mundial, esse tipo de câncer no sangue tem uma alta incidência entre os indivíduos com imunodeficiência em regiões endêmicas para malária na África, onde predominam as infecções pela espécie P. falciparum.
No Brasil, a maioria dos casos de malária se concentra na região amazônica e é causada pela espécie Plasmodium vivax, cuja associação com o desenvolvimento de linfoma ainda não foi apontada em estudos epidemiológicos.
O especialista em malária Marcelo Urbano Ferreira, professor do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP), afirmou que o linfoma de Burkitt é raro no Brasil. “Não conheço estudos sobre sua associação com a malária por aqui, possivelmente porque o número de casos disponíveis para esse tipo de estudo é excessivamente pequeno”, disse.
Segundo Robbiani, autor principal do artigo, é bem provável que outras espécies do parasita também possam ativar a enzima AID. “Mas se isso representaria um risco elevado de câncer ainda não sabemos. Precisa ser estudado”, disse à Agência FAPESP.
Os pesquisadores da Rockfeller University ressaltam a necessidade de investigar também a interação dos parasitas causadores de malária com o vírus Epstein Barr, outro patógeno associado ao desenvolvimento de linfoma de Burkitt.
“A partir dessa descoberta inicial, podemos pensar em estratégias para tentar limitar o dano colateral ao DNA causado pela enzima AID em pacientes cronicamente infectados por malária. Mas antes precisamos entender como esse dano colateral é causado e essa é uma área de pesquisa de muitos laboratórios, inclusive o nosso”, disse Robbiani.
Agência FAPESP