Em busca de terapias mais eficazes e com ação mais imediata, pesquisadores da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (FCFRP-USP), testam, em modelos animais, novas classes de drogas que têm como mecanismo de ação inibir a enzima DNAmetiltransferase (DNMT), cujo papel é catalisar uma reação química conhecida como metilação do DNA (adição de um grupo metil à molécula de DNA).
A metilação do DNA é considerada uma modificação epigenética, ou seja, que altera o funcionamento do genoma sem alterar o código genético em si. Pode ser induzida por diferentes estímulos biológicos e ambientais, entre eles o estresse, promovendo o silenciamento de genes e, consequentemente, a diminuição da expressão de proteínas.
Resultados recentes do projeto apoiado pela FAPESP foram publicados este ano na revista Acta Neuropsychiatrica e apresentados pela pesquisadora Sâmia Joca durante a nona edição do Congresso Mundial do Cérebro, realizado no Rio de Janeiro entre os dias 7 e 11 de julho.
“Experimentos com camundongos mostraram que diferentes classes de drogas inibidoras da enzima DNMT apresentam efeito tipo-antidepressivo agudo. Quando combinamos esses inibidores com antidepressivos convencionais, também de diferentes classes farmacológicas, observamos um efeito sinérgico entre os compostos”, contou Joca em entrevista à Agência FAPESP.
Conforme explicou a pesquisadora, tanto os antidepressivos convencionais como os inibidores de DNMT parecem favorecer a expressão de genes importantes para a resiliência ao estresse. A diferença, segundo indicam os resultados dos experimentos feitos em Ribeirão Preto, é que o segundo grupo de drogas induz esse efeito mais rapidamente.
“Quando somos expostos a uma situação estressante, nosso organismo libera uma série de mediadores endógenos, como glutamato e cortisol, necessários para ativar circuitos importantes para a resposta aguda ao estresse. Mas, quando a liberação desses mediadores se torna crônica e excessiva, pode causar atrofia ou morte de neurônios, prejudicando o funcionamento adequado de circuitos importantes para a regulação do humor, do afeto ou da cognição”, disse a pesquisadora.
Evidências da literatura científica indicam que o estresse também reduz a formação de sinapses, a neurogênese e a proliferação celular em determinadas partes do cérebro, comprometendo a plasticidade neuronal, ou seja, a capacidade cerebral de se modificar para se adaptar aos estímulos ambientais.
Algumas proteínas, porém, atuam protegendo os neurônios contra os danos causados pelo estresse – entre elas a mais conhecida é a BDNF (fator neurotrófico derivado do cérebro, na sigla em inglês).
“Evidências indicam, no entanto, que a metilação do DNA induzida pelo estresse, por fazer a cromatina ficar mais condensada no núcleo das células, dificulta a expressão do gene do BDNF e possivelmente de outros fatores importantes para a sobrevivência dos neurônios. Acreditamos que, no longo prazo, esse prejuízo ao mecanismo de plasticidade neuronal importante para a resiliência ao estresse possa predispor ao desenvolvimento de transtornos psiquiátricos”, disse Joca.
Estudos de outros grupos, contou a pesquisadora, haviam mostrado que um dos efeitos do tratamento crônico com antidepressivos convencionais é o aumento na expressão de BDNF, principalmente no córtex e no hipocampo – as regiões do cérebro mais afetadas pelo estresse. Mostraram ainda que, se a expressão de BDNF for bloqueada, os antidepressivos não surtem efeito.
“Acreditamos que os antidepressivos convencionais, ao aumentar a liberação de neurotransmissores como serotonina ou noradrenalina, induzem uma cascata de efeitos intracelulares que, em última instância, interferem no padrão de metilação do DNA. Mas, como é um efeito indireto, acaba sendo necessário um tratamento crônico para que ele apareça. Imaginamos então que drogas capazes de interferir diretamente no padrão de metilação do DNA poderiam ter um efeito antidepressivo agudo”, contou a pesquisadora.
Para testar a hipótese, o grupo de Ribeirão Preto realizou um tipo de experimento com ratos, utilizado há mais de 30 anos, para triar o efeito de fármacos candidatos a antidepressivos. O modelo consiste em colocar o roedor durante 15 minutos em um tanque com água, de onde por mais que ele se esforce não consegue sair. No dia seguinte, o experimento é repetido durante 5 minutos.
“Os antidepressivos de maneira geral, mas não outras classes de drogas com efeito central, fazem aumentar no segundo dia do experimento o tempo que o animal fica nadando para tentar escapar. É como se a droga não o deixasse desistir facilmente. Portanto, esse efeito observado no teste em resposta a um tratamento novo é considerado preditivo de potencial antidepressivo”, contou Joca.
Nesse modelo de estresse agudo, o grupo testou dois diferentes inibidores de DNMT: uma droga experimental conhecida como RG108 e uma droga já usada na clínica como quimioterápico, a decitabina.
Os primeiros resultados dos experimentos, feitos apenas com a decitabina, foram divulgados em 2012 no British Journal of Pharmacology.
“Tanto a decitabina como o RG108 interferem na metilação do DNA, mas por mecanismos completamente diferentes, e ambos apresentaram nesse modelo de estresse agudo o mesmo efeito dos antidepressivos convencionais fluoxetina e desipramina, porém mais rapidamente”, disse Joca.
Em um novo experimento, o grupo combinou as quatro classes de drogas entre si (fluoxetina, desipramina, decitabina e RG108) em doses subefetivas – abaixo do necessário para obter efeito terapêutico quando usadas de maneira isolada. Em todas as combinações foi observado efeito antidepressivo significativo.
“Se apenas uma ou duas combinações tivesse funcionado, poderia ser algo específico de uma determinada droga. Mas como todas tiveram efeito, isso sugere um sinergismo entre os inibidores de DNMT e os antidepressivos convencionais, ou seja, os efeitos se somam. Tal abordagem seria interessante na clínica, pois, ao reduzir as doses dos tratamentos isolados, os efeitos adversos também seriam, em tese, reduzidos”, comentou Joca.
O grupo vem estudando atualmente como os inibidores de DNMT alteram o padrão de expressão gênica no córtex e no hipocampo – particularmente a expressão de BDNF – e devem publicar os resultados em breve.
“O que temos observado é que os inibidores de DNMT não diminuem a metilação do DNA em todas as regiões cerebrais. Eles parecem modular o efeito que o estresse provoca no cérebro”, disse Joca.
Modelo de estresse crônico
Após as primeiras evidências positivas com a decitabina, o grupo decidiu testar os inibidores de DNMT em um modelo de estresse crônico, capaz de induzir em ratos alterações comportamentais e endocrinológicas semelhantes às observadas em humanos deprimidos.
O modelo consiste em expor os roedores a 30 sessões de estresse intenso. Após sete dias, o animal é colocado no mesmo ambiente do teste anterior, mas numa condição em que é capaz de controlar sua exposição ao estresse.
“Quando comparamos os ratos submetidos às sessões iniciais de estresse com um grupo controle [não estressado], vemos que eles têm mais dificuldade de aprender a controlar a exposição ao estresse no dia do teste”, explicou Joca.
Observou-se nesse modelo que o tratamento com antidepressivos convencionais demora cerca de sete dias para alterar a expressão gênica no córtex e apresentar efeito sobre o comportamento dos animais.
Os inibidores de DNMT, por outro lado, promoveram efeito após administração aguda. Uma única injeção da droga dada após o primeiro dia de estresse foi suficiente para promover efeito tipo-antidepressivo (evidenciado por atenuação do efeito induzido pela pré-exposição ao estresse) e tornar o padrão de metilação no córtex e o comportamento dos animais mais semelhante ao do grupo controle.
A pesquisadora ressalta, no entanto, que a ideia neste momento não é propor o uso de inibidores de DNMT como um tratamento clínico para depressão e sim entender os mecanismos intracelulares induzidos por esses compostos e gerar conhecimentos sobre vias que possam ser exploradas farmacologicamente.
“A relação risco-benefício do uso da decitabina poderia ser avaliada no caso de um paciente em estado grave, com risco de suicídio, pois já é uma droga aprovada para uso em humanos”, avaliou Joca.
Em casos desse tipo, contou a pesquisadora, tem sido usada uma droga conhecida como cetamina – aprovada para uso humano como anestésico local e que também demostrou efeito antidepressivo agudo e sustentado, de até 14 dias com uma única dose.
“Está descrito na literatura que a cetamina regula a expressão de vários genes e estamos estudando por qual mecanismo ela induz esse efeito antidepressivo agudo. O problema é que a cetamina é uma droga de abuso e há risco de o paciente se tornar dependente ou sofrer overdose. Por isso há necessidade de encontrar novas opções com ação semelhante e menor risco de dependência”, disse a pesquisadora.
Agência FAPESP