Em experimentos com leveduras da espécie Saccharomyces cerevisiae – a mesma usada na fabricação de pães, cerveja, vinho e queijos –, pesquisadores brasileiros investigaram pela primeira vez o que acontece com as mitocôndrias quando uma dessas vias retrógradas – mediada por proteína da família Rtg – não está funcionando direito.
A pesquisa foi realizada no âmbito do Centro de Pesquisa em Processos Redox em Biomedicina (Redoxoma),um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPIDs) da FAPESP. Os resultados foram divulgados recentemente na revista Free Radical Biology and Medicine.
“Observamos várias diferenças nas células sem a via retrógrada ativa, entre elas o maior consumo de oxigênio pelas mitocôndrias e uma maior suscetibilidade celular ao estresse oxidativo ( condição em que há um aumento nos níveis de espécies reativas de oxigênio, que podem danificar moléculas importantes para o equilíbrio celular)”, contou Fernanda Marques da Cunha, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e coordenadora do estudo apoiado pela FAPESP.
De acordo com Cunha, diversas proteínas atuam como mediadoras de vias de sinalização retrógrada. No caso da via mediada por Rtg, estudos anteriores de outros grupos identificaram três como sendo as mais importantes: Rtg1, Rtg2 e Rtg3.
“As três são encontradas no citoplasma. A Rtg2 ativa a Rtg1 e esta se une à Rtg3 formando um fator de transcrição que vai para o núcleo e ativa vários genes envolvidos no metabolismo mitocondrial”, contou Cunha.
Para descobrir o que aconteceria com a mitocôndria se por algum motivo essa comunicação fosse prejudicada, os pesquisadores compararam culturas de células de levedura selvagem (nas quais as três proteínas funcionam normalmente) com dois tipos de leveduras mutantes: uma em que foi silenciado o gene codificador da Rtg1 e outra sem o gene da Rtg2.
As células foram cultivadas em um meio rico em glicose durante sete dias e avaliadas após esse período.
“Quando analisamos as células intactas, observamos que as duas linhagens mutantes consumiam aproximadamente o dobro de oxigênio do que as selvagens. Foi um resultado inesperado, pois acreditávamos que a mitocôndria estaria com o metabolismo prejudicado e, portanto, consumindo menos oxigênio”, contou Cunha.
Um novo experimento foi feito para descobrir se esse consumo elevado estaria relacionado com uma quantidade maior de mitocôndrias nas células.
“Durante esses sete dias, as células passam por diferentes estágios. Inicialmente elas obtêm energia de forma anaeróbica por meio da fermentação da glicose e, quando ela acaba, passam a consumir os produtos da fermentação de forma aeróbica. Nessa fase aumenta o número de mitocôndrias no interior das células. Mas, depois que todos os substratos respiratórios acabam, as células entram em fase estacionária, ou seja, param de se dividir e baixam os níveis de respiração diminuindo os números de mitocôndrias”, explicou Cunha.
Os pesquisadores do Redoxoma observaram que, embora as células de levedura mutantes também tivessem entrado na fase estacionária após o sétimo dia de cultivo, o número de mitocôndrias em seu interior não havia diminuído como nas células selvagens. Além disso, proporcionalmente, cada organela estava consumindo uma quantidade maior de oxigênio em comparação à organela da célula selvagem.
“Quando diminui a demanda da célula pelas mitocôndrias, essas organelas são degradadas seletivamente. Esse processo é conhecido como mitofagia e demonstramos que ele estava diminuído nas células mutantes”, contou Cunha.
O que não mata, fortalece
Quando a mitocôndria já não funciona bem, explicou Cunha, ela passa a produzir uma maior quantidade de peróxido de hidrogênio (H2O2) – substância também conhecida como água oxigenada e uma das causadoras do estresse oxidativo.
No entanto, ao isolar as mitocôndrias das leveduras mutantes, os pesquisadores descobriram que a produção de peróxido de hidrogênio estava menor em relação ao verificado nas células selvagens.
“Existe um conceito conhecido como hormese segundo o qual doses mínimas de substâncias tóxicas fazem bem ao organismo, pois estimulam a criação de defesas que o deixam preparado para lidar com doses maiores. É como naquele ditado: aquilo que não me mata, me fortalece”, afirmou a pesquisadora.
Para testar se esse conceito poderia ser aplicado às leveduras em estudo, os pesquisadores submeteram as células a um desafio, colocando-as em um meio com altas concentrações de peróxido de hidrogênio. Confirmando a suspeita, as células selvagens sobreviveram cerca de três vezes mais do que as mutantes.
“As células mutantes apresentaram menor capacidade de transformar o peróxido de hidrogênio em substâncias não nocivas, como oxigênio e água. Ambas apresentaram menor atividade da enzima glutationa peroxidase, uma das responsáveis por neutralizar o peróxido. E a célula sem a proteína Rtg1 apresentou também menor atividade da enzima catalase”, contou Cunha.
Os experimentos foram realizados durante o mestrado de Nicole Quesada Torelli, no Instituto de Química (IQ) da Universidade de São Paulo (USP), sob a orientação de Cunha e da professora da USP Alicia Kowaltowski. Também colaborou o pesquisador José Ribamar Ferreira Júnior, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP.
Agência FAPESP