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Chuvas torrenciais, com enxurradas, deslizamentos de terras e vítimas fatais, têm ocorrido na região dos Andes. E esses eventos extremos tendem a acontecer com intensidades e frequências cada vez maiores em razão das mudanças climáticas globais. Os efeitos são potencializados pela pobreza da área afetada, com estradas precárias e habitações populares perigosamente implantadas nas encostas dos desfiladeiros. O cenário é muito parecido com o dos Himalaias indianos, onde mais de 10 mil pessoas perderam a vida nas chuvas calamitosas de 2013.
Agora um sistema de alerta robusto, capaz de proporcionar previsões com dois dias de antecedência e alta margem de acerto, está disponível e poderá ser utilizado facilmente pelos centros operacionais de previsão meteorológica.

Fruto de trabalho conjunto de cientistas brasileiros e alemães, que aplicaram a técnica de redes complexas a dados meteorológicos obtidos por satélite, o sistema foi relatado no artigo Prediction of extreme floods in the eastern Central Andes based on a complex networks approach, publicado na revista on-line Nature Communications em 14 de outubro de 2014

A pesquisa faz parte do projeto temático “Fenômenos dinâmicos em redes complexas: fundamentos e aplicações”, coordenado por Elbert Einstein Nehrer Macau, pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), no Brasil, e por Jurgen Kurths, da Humboldt University, na Alemanha. O projeto é apoiado pela FAPESP e pela Sociedade Alemã de Amparo à Pesquisa (DFG, sigla para o nome em alemão, Deutsche Forschungsgemeinschaft).

A equipe binacional dedicada à climatologia analisou cerca de 50 mil séries temporais de dados meteorológicos em alta resolução, registrados ao longo dos últimos 15 anos e disponibilizados pela Nasa, a agência espacial norte-americana, e pela Agência de Exploração Aeroespacial Japonesa. E constatou que, após surgirem na região de Buenos Aires, na Argentina, grandes sistemas convectivos deslocam-se para noroeste, rumo aos Andes, onde, dois dias depois, provocam chuvas torrenciais. Surpreendentemente, esses eventos extremos se propagam em direção contrária à dos ventos, que vão para o sul.

“Correlações simples entre séries temporais de dados são procedimentos corriqueiros em vários campos da ciência – por exemplo, correlações entre séries de temperaturas registradas em um ponto do oceano e séries de precipitações sobre o continente. A metodologia que desenvolvemos é muito mais complexa e completa, permitindo não apenas correlacionar quantidades gigantescas de dados, mas também estabelecer relações de causa e efeito entre os fenômenos observados”, disse Henrique de Melo Jorge Barbosa, professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo e um dos autores do artigo da Nature Communications.

O projeto temático tem aplicações também em outras áreas, da fotônica à neurologia.

"Rio voador"

“O que nos surpreendeu foi descobrir que o deslocamento das precipitações ocorre em sentido contrário ao do ‘rio voador’”.

A expressão “rios voadores” foi popularizada por José Antonio Marengo Orsini, pesquisador titular do Inpe e membro do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, da sigla em inglês) da Organização das Nações Unidas (ONU). Trata-se de grandes massas de ar impregnadas de vapor de água, muitas vezes acompanhadas por nuvens, propelidas pelos ventos.

O “rio voador” originado no Oceano Atlântico e carregado com ainda mais umidade após interagir com a Floresta Amazônica pode transportar volumes de água da mesma ordem de grandeza da vazão do maior rio do planeta, o Amazonas (200 mil metros cúbicos por segundo). Barrada pelo paredão de 4 mil metros de altura constituído pela Cordilheira dos Andes, essa massa de ar úmido inflete para o sul, alcançado as regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul do Brasil e o norte da Argentina.

“Pensamos, inicialmente, que a sequência temporal das precipitações deveria acompanhar o sentido do rio voador. Isto é, que o aumento das chuvas sobre a Floresta Amazônica provocaria precipitações mais intensas no sul. Parecia óbvio. Porém, ao utilizarmos a nova metodologia, constatamos que os eventos extremos de precipitação não se propagam do norte para o sul, mas do sul para o norte. Refizemos as contas várias vezes e verificamos que, realmente, as precipitações extremas se propagam em sentido contrário ao do rio voador”, afirmou Barbosa.

Os pesquisadores precisaram voltar à Física da atmosfera e à meteorologia, para entender por que isso acontecia. “Na verdade, o sentido de propagação das precipitações depende do sentido de propagação da instabilidade, de sul para o norte, e não do sentido de propagação da massa de ar úmido, de norte para o sul. E esse sentido de propagação da frente fria é determinado por um sistema de baixa pressão que se configura no norte da Argentina”, explicou Barbosa.

Com base nessa descoberta, os pesquisadores conseguiram estabelecer um conjunto de regras que pode ser usado para prever os acontecimentos. Tipicamente, após um pico de convecção e chuva no norte da Argentina, certas condições específicas de pressão e circulação dos ventos fazem com que as precipitações se desloquem para os Andes e a Amazônia. “Com essa regra, montamos nosso sistema de previsão. E, comparando-o com os sistemas tradicionais, registramos uma probabilidade muito maior de acerto. Para os anos de El Niño, quando os eventos extremos são mais fortes e frequentes, nosso sistema apresentou uma margem de acerto de 90%. Para os demais anos, o acerto foi de, pelo menos, 60%”, disse.

“Não conseguimos prever quando acontecerão as primeiras chuvas no norte da Argentina. Mas, uma vez ocorridas, e verificadas determinadas condições de pressão e vento, podemos dizer, com grande margem de acerto, que chuvas extremas ocorrerão na região dos Andes dois dias depois”.

Há ainda um caminho a percorrer antes que esse sistema possa se tornar um instrumento utilizável por entidades de defesa civil, mas o passo mais difícil do ponto de vista científico já foi dado. “A ferramenta está disponível. E as pessoas que quiserem utilizá-la não precisarão entender sobre redes complexas, nem reanalisar os 15 anos de dados que utilizamos. Basta utilizar nossa receita”, concluiu Barbosa.
 
Agência FAPESP