Em um artigo publicado recentemente no The Journal of Biological Chemistry, pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) descreveram uma nova via de agregação da superóxido dismutase relacionada com a oxidação de um de seus resíduos de aminoácido: o triptofano 32.
A descoberta pode abrir caminho para o desenvolvimento de novas drogas contra a ELA, doença rara (1 caso para cada 100 mil pessoas por ano), cujo portador mais conhecido talvez seja o cientista Stephen Hawking, da University of Cambridge, no Reino Unido.
“A superóxido dismutase é uma das principais defesas antioxidantes do organismo humano. Sua função primordial é neutralizar um radical livre de oxigênio conhecido como ânion superóxido, que, em excesso, pode ser tóxico para as células”, explicou Ohara Augusto, professora do Instituto de Química da USP e coordenadora do Centro de Pesquisa em Processos Redox em Biomedicina (Redoxoma), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPIDs) da FAPESP.
De acordo com a pesquisadora, estudos anteriores mostraram que na medula de portadores de ELA e de modelos animais da doença é possível encontrar agregados de superóxido dismutase, bem como danos oxidativos em proteínas, lipídeos e moléculas de DNA.
“O dano oxidativo existe, sem dúvida, mas se ele é causa ou consequência da doença ainda não sabemos ao certo”, disse Augusto. Ainda de acordo com a literatura científica, cerca de 10% dos casos de ELA são hereditários e, em 20% desses, é possível encontrar mutações no gene da superóxido dismutase. No entanto, os outros 90% são considerados casos esporádicos, com etiologia desconhecida.
“Mutações na enzima isoladamente não explicam a doença, mas, como os sintomas e a evolução da forma familiar e esporádica de ELA são semelhantes, pressupõe-se um mesmo mecanismo patogênico para ambas. Modificações oxidativas na superóxido dismutase poderiam explicar mudanças estruturais que levariam à agregação proteica”, disse Augusto.
Alteração estrutural
Algumas modificações oxidativas na enzima relacionadas com a ELA já haviam sido descritas por outros grupos, mas o trabalho dos pesquisadores do Redoxoma foi o primeiro a descrever uma via que envolve a oxidação do triptofano 32 – um aminoácido encontrado na superóxido dismutase de humanos e de símios, mas não na de outros mamíferos.
Coincidentemente ou não, a ELA é uma doença descrita por cientistas quase exclusivamente em símios, o que sugere que a oxidação do triptofano 32 está de alguma forma envolvida no mecanismo patológico.
“Para induzir a doença em roedores, por exemplo, foi necessário fazer animais transgênicos, capazes de expressar a enzima humana”, contou a pesquisadora.
Em um trabalho anterior, Augusto havia descrito que em determinadas situações a enzima superóxido dismutase pode desempenhar uma atividade pró-oxidante e, nesses casos, formar um radical carbonato. Em experimentos in vitro a pesquisadora mostrou que esse radical carbonato é o responsável por oxidar o aminoácido triptofano 32.
“Ao ser oxidado, esse triptofano 32 se liga a outra molécula da enzima – um radical triptofanila – e forma um tetrâmero (molécula composta por quatro unidades). Mostramos por técnicas espectroscópicas que isso leva a enzima a se desenovelar (perder a forma funcional) e a se agregar”, contou Augusto.
Passo a passo
Para fazer o experimento, os pesquisadores usaram enzimas humanas recombinantes, ou seja, produzidas em laboratório utilizando bactérias geneticamente modificadas para expressar o gene da superóxido dismutase.
Foram usadas tanto a enzima normal (wild type), quanto uma das formas mutantes associadas à ELA, conhecida como G93A. Para estimular a atividade pró-oxidante, os pesquisadores incubaram as duas versões da enzima com água oxigenada e bicarbonato.
“A enzima usa a água oxigenada para oxidar outras moléculas – nesse caso, a própria enzima, que se torna inativa. Já o bicarbonato foi usado por ser o tampão fisiológico por excelência, ou seja, é uma substância encontrada em todos os fluidos do organismo humano e atua como corretor de pH”, explicou Augusto.
O processo de oxidação das duas formas da enzima – a normal e a mutante – foi acompanhado pelos pesquisadores, em diferentes intervalos de tempo, durante uma semana. Todas as modificações sofridas na estrutura da proteína nos diferentes momentos analisados foram descritas com auxílio de técnicas de espectrometria de massa.
“Observamos que após uma hora de oxidação já começa a se formar um tetrâmero de 10 nanômetros (nm) de diâmetro, que permanece até 48 horas, e depois começam a se formar os agregados proteicos que chegam a 800 nm de diâmetro”, contou a pesquisadora.
De acordo com Augusto, o processo de agregação da mutante G93A foi um pouco mais acelerado que o da enzima normal, mas a diferença não foi estatisticamente significante.
Em um dos experimentos realizados, os pesquisadores trocaram o aminoácido triptofano 32 por uma fenilalanina e, embora a enzima tenha ganhado atividade oxidativa na presença da água oxigenada, a agregação proteica não ocorreu.
“Esse resultado mostra que é, de fato, necessário haver o triptofano 32 oxidado para ocorrer a agregação. É algo que já havia sido proposto em estudos anteriores, mas nunca havia sido examinado na prática”, contou Augusto.
Na avaliação da cientista, caso novos estudos comprovem que também in vivo pode ocorrer a formação do radical carbonato e a consequente oxidação do triptofano, e que isso pode levar à agregação proteica, então esse aminoácido poderá se tornar um alvo terapêutico.
“Uma das possibilidades seria desenvolver um anticorpo capaz de reconhecer o ditriptofano, que é o produto da oxidação do triptofano 32, e impedir que as proteínas se agreguem”, afirmou Augusto.
O artigo Oxidation of the tryptophan 32 residue of human superoxide dismutase 1 caused by its bicarbonate-dependent peroxidase activity triggers the non-amyloid aggregation of the enzyme (doi: 10.1074/jbc.M114.586370 jbc.M114.586370) pode ser lido em www.jbc.org/content/early/2014/09/18/jbc.M114.586370.
Agência FAPESP