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Durante muito tempo o câncer foi visto como uma doença de origem fundamentalmente genética, ou seja, causada por mutações no DNA – herdadas ou adquiridas – que alteram a expressão dos genes e fazem as células se proliferarem descontroladamente. Mas, na visão da cientista iraniana radicada nos Estados Unidos Mina Bissell, expoente no estudo do câncer de mama, esta é apenas uma parte da história. Metade dos fatores necessários para o desenvolvimento de um tumor estaria, segundo ela, do lado de fora das células, no chamado microambiente celular.
“Se o genoma fosse realmente o fator dominante, uma única mutação herdada seria o suficiente para causar câncer em todo o nosso corpo – uma vez que todas as células compartilham exatamente o mesmo DNA”, afirmou Bissell durante palestra apresentada no dia 2 de setembro no Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP).

A pesquisadora, que atualmente coordena um laboratório com seu nome no Lawrence Berkeley National Laboratory, nos Estados Unidos, vem reunindo nos últimos 30 anos evidências para provar sua teoria de que a forma e a função de um determinado tecido se regulam reciprocamente, de forma dinâmica, e qualquer alteração dessa arquitetura e dessa rede de sinalização pode resultar em malignidade.

Suas pesquisas já deram origem a cerca de 380 artigos publicados em revistas de alto impacto. Alguns dos principais resultados foram apresentados ao público brasileiro durante a palestra na USP.

“Escolhemos a glândula mamária como modelo de estudo porque é um dos poucos tecidos que mudam durante a vida adulta. Ela se desenvolve durante a gravidez, durante a lactação e, quando a amamentação é interrompida, a glândula regride”, disse Bissell.

Para investigar como ocorriam essas alterações no tecido, a pesquisadora se concentrou em estruturas conhecidas como ácinos, pequenos sacos existentes na mama cujas paredes são revestidas por células especializadas na secreção de leite.

“Retiramos essas estruturas de camundongos fêmeas prenhes e as colocamos em uma cultura in vitro para ver se ainda se lembrariam de como é ser uma glândula mamária. Mas, em pouco tempo, elas assumiam uma estrutura completamente diferente e esqueciam como fazer leite. Isso mostra que é o microambiente que diz para as células o que elas devem fazer. As células não são autônomas, como alguns biólogos ainda acreditam”, avaliou a pesquisadora.

E o que seria afinal esse microambiente? Segundo Bissell, trata-se da chamada matriz extracelular – uma massa que une as células e é composta por moléculas como colágeno, glicoproteínas, integrinas e laminina.

Ainda nos anos 1980, Bissell formulou a teoria da reciprocidade dinâmica, segundo a qual a matriz extracelular enviaria sinais para o núcleo da célula que resultariam em um remodelamento da cromatina e uma mudança na expressão dos genes. E o núcleo então sinalizaria de volta, causando um remodelamento da matriz extracelular. Forma e função estariam se regulando reciprocamente.

Para testar a hipótese da existência de uma comunicação entre célula e microambiente, Bissell reproduziu o experimento com as células mamárias de camundongos fêmeas, mas desta vez as colocou sobre um gel contendo alguns dos principais componentes da matriz extracelular. Em vez de assumir a estrutura achatada, bidimensional, como no primeiro experimento, as células se organizaram de maneira muito semelhante à observada in vivo e, o mais surpreendente, continuaram a secretar leite.

Esse modelo celular tridimensional da glândula mamária foi adaptado para criar um teste capaz de diferenciar uma célula normal de uma célula maligna. Para isso, Bissell e colaboradores utilizaram uma série de linhagens de células humanas (HMT3522) oriundas de uma paciente sadia submetida a cirurgia para redução da mama.

Quando cultivadas por dez dias em um ambiente tridimensional rico em laminina, essas células são capazes de recapitular as características da glândula mamária normal e apresentam um padrão de proliferação controlada e parada do ciclo celular.

“Colocamos uma dessas linhagens em uma placa e retiramos o fator de crescimento epidérmico (proteína importante para o desenvolvimento normal da glândula mamária). As células transformadas começaram a se proliferar rapidamente e, ao injetá-las em um animal, foi possível formar um tumor”, contou Bissell.

Quando se comparavam as células malignas com as normais em uma cultura bidimensional comum, elas pareciam exatamente iguais. Mas, ao colocá-las no modelo 3D, as células malignas assumiam estruturas desorganizadas características de um tumor.

“A arquitetura e a beleza do tecido aparecem apenas em 3D e a malignidade é regulada no nível da organização do tecido, pela interação entre célula e matriz extracelular. É um sinal de que a arquitetura do tecido governa o genoma e, quando ela é prejudicada, como quando envelhecemos, ficamos mais suscetíveis ao câncer”, disse a cientista.

Se a sua teoria estivesse correta, uma intervenção que corrigisse a arquitetura do tecido poderia fazer com que células cancerígenas voltassem a se comportar como células normais. E, de fato, Bissell conseguiu comprovar essa hipótese.

O grupo havia observado que na superfície das células malignas havia seis vezes mais integrinas e sete vezes mais EGFR do que o normal. Usando um inibidor para apenas uma dessas integrinas, o crescimento desordenado das células foi revertido.

“Elas continuaram com o mesmo genoma aberrante, mas a desordem de crescimento foi revertida porque a arquitetura estrutural é dominante sobre o genoma. O fenótipo é dominante sobre o genótipo, mesmo em se tratando de câncer”, opinou Bissell.

O papel da actina

Após três décadas de investigação, Bissell acredita estar perto de desvendar os mecanismos pelos quais ocorre a comunicação entre a célula mamária e a matriz extracelular – graças, em parte, à colaboração do pesquisador brasileiro Alexandre Bruni-Cardoso, docente do Instituto de Química da Universidade de São Paulo.

Durante seu pós-doutorado realizado no laboratório de Bissell, Bruni-Cardoso ajudou a esclarecer como ocorre o transporte da proteína actina de dentro para fora do núcleo celular.

“A actina é uma proteína que faz parte do citoesqueleto celular. Ela compõe fibras que ajudam a dar forma e movimento às células. Nos últimos 30 anos estudos começaram a apontar que também existe actina no núcleo e, mais recentemente, mostrou-se que lá dentro ela interage com outras proteínas nucleares e regula a transcrição gênica”, explicou Bruni-Cardoso.

Em um estudo anterior, também no laboratório coordenado por Bissell, a pós-doutoranda Virginia Spencer mostrou em uma linhagem de células mamárias de camundongo que, quanto maior era a quantidade de actina no núcleo, mais as células se proliferavam.

Ao tratar a cultura de células com a proteína laminina – uma das mais importantes proteínas da membrana basal das células –, Spencer observou que a quantidade de actina no núcleo caía drasticamente e isso acontecia bem antes de as células pararem de se proliferar.

Ao repetir o experimento, mas desta vez acrescentando um peptídeo na actina que a impedia de sair do núcleo, Spencer observou que os sinais inibitórios da laminina eram anulados e as células continuavam a se proliferar. O estudo foi publicado no Journal of Cell Science em 2011.

Usando como modelo uma cultura de células mamárias humanas, Bruni-Cardoso começou a investigar como os sinais da laminina chegavam até a actina nuclear.

“Nós identificamos a proteína específica que recebe o sinal da laminina, vai até o núcleo e exporta a actina do núcleo. Os resultados devem ser publicados em breve”, contou Bruni-Cardoso.

Em uma linhagem de células tumorais, o pesquisador observou que essa sinalização está desregulada e, mesmo tratando a cultura com laminina, os níveis de actina no núcleo não diminuem.

“Esse pode ser um dos motivos pelos quais as células malignas se proliferam descontroladamente. A descoberta abre caminho para o estudo de drogas que possam corrigir essa sinalização celular”, comentou Bruni-Cardoso.

De acordo com Bissell, a actina parece agir como uma alavanca de acionamento do crescimento celular. “A questão agora é descobrir como exatamente ela funciona. Hoje sabemos que não é apenas a arquitetura, mas também a sinalização que determina o comportamento das células”, concluiu.

Agência FAPESP