Denominada Alda-1, a droga é capaz de ativar uma enzima chamada ALDH2 (aldeído desidrogenase-2), existente na mitocôndria e essencial para o bom funcionamento de todas as células, inclusive as cardíacas.
“Essa enzima tem uma enorme importância para a célula, pois ajuda a evitar o acúmulo de aldeídos – moléculas tóxicas e altamente reativas produzidas pela célula. Cada vez mais, a deficiência de ALDH2 tem sido associada a diferentes tipos de doença”, contou Julio Cesar Batista Ferreira, professor do Departamento de Anatomia do Instituto de Ciências Biomédicas da USP e coordenador da pesquisa apoiada pela FAPESP no Brasil.
Em um experimento recente, realizado durante o mestrado de Kátia Maria Sampaio Gomes – sob orientação de Ferreira e com Bolsa da FAPESP –, o grupo tratou ratos portadores de insuficiência cardíaca com Alda-1 durante seis semanas e observou um aumento de 40% na capacidade do coração de bombear sangue.
Os resultados foram divulgados na edição de junho da revista Cardiovascular Research. O projeto venceu a Olimpíada USP de Inovação 2013 na categoria “Prova de Conceito”.
O modelo animal usado na pesquisa simula uma das principais etiologias da insuficiência cardíaca: o infarto agudo do miocárdio. Para induzir o problema no rato, os cientistas amarram uma de suas artérias coronárias. A falta de irrigação sanguínea causa a morte imediata de aproximadamente 30% das células cardíacas. As restantes passam a trabalhar dobrado para compensar a lesão e acabam entrando em colapso. Após um mês, o animal já apresenta sinais de insuficiência cardíaca.
“Iniciamos o tratamento com Alda-1 quatro semanas após o infarto induzido, quando os animais já apresentavam uma função cardíaca prejudicada. Após seis semanas de tratamento, observamos aumento de 40% no volume de sangue bombeado no grupo que recebeu a droga. Já no grupo placebo a função cardíaca havia caído ainda mais”, contou Ferreira.
Primeiros achados
A Alda-1 foi descoberta ainda durante o pós-doutorado de Ferreira, realizado em Stanford com apoio da FAPESP.
Em um estudo publicado em 2011 na revista Science Translational Medicine, o grupo demonstrou que, ao ativar a enzima ALDH2 nas células cardíacas, a Alda-1 poderia proteger o coração após um infarto.
“Hoje, sabemos que o excesso de aldeídos prejudica diretamente o metabolismo mitocondrial, resultando em menor produção de ATP (adenosina trifosfato, molécula que armazena energia) e maior liberação de moléculas reativas como os radicais livres e os próprios aldeídos. Com o metabolismo prejudicado, a célula acaba morrendo. Nesse sentido, a Alda-1 tem um papel importante, pois protege a célula desse colapso metabólico induzido por excesso de aldeídos”, explicou Ferreira.
A ALDH2 tem justamente a missão de eliminar os aldeídos, mas sua atividade costuma estar diminuída em células cardíacas após um infarto ou em pacientes com insuficiência cardíaca. “Os próprios aldeídos em excesso acabam inativando a ALDH2 e ela não consegue removê-los de forma eficiente, criando um ciclo vicioso que resulta na morte celular”, explicou Ferreira.
No artigo de 2011, os cientistas mostraram que uma das drogas mais usadas em pacientes infartados para promover a vasodilatação – a nitroglicerina – inibe ainda mais a atividade da ALDH2, acelerando o processo de morte das células cardíacas. Mas experimentos com ratos indicaram que esse efeito deletério da nitroglicerina poderia ser neutralizado se, concomitantemente, a Alda-1 fosse administrada (leia mais em http://agencia.fapesp.br/14904).
Em uma revisão recente publicada na revista Physiological Reviews, os grupos de Stanford e da USP discutem mais amplamente o papel da ALDH2 e as oportunidades terapêuticas de substâncias capazes de ativar a expressão dessa enzima.
“Como os aldeídos são capazes de entrar na circulação e ligar-se a proteínas de órgãos distantes, nossa hipótese é que o tratamento com Alda-1 poderia evitar o efeito cascata que costuma ocorrer em pacientes com insuficiência cardíaca e acometer outros órgãos”, disse Ferreira.
Ao comparar amostras de sangue de pacientes com insuficiência cardíaca e de pessoas saudáveis, o grupo de Ferreira observou um nível três vezes maior de aldeídos circulantes. “Estimamos que no coração o nível seja 10 vezes maior”, disse o pesquisador.
Ensaios clínicos
Sob a coordenação de Daria Mochly-Rosen, professora do Departamento de Biologia Química e de Sistemas de Stanford, o grupo da universidade norte-americana criou a startup Aldea Pharmaceuticals para tentar transformar a Alda-1 – ainda uma droga experimental – em um produto comercial.
“Eles acabaram de obter financiamento privado para iniciar o ensaio clínico de fase 1, que basicamente tem o objetivo de avaliar a toxicidade da molécula em indivíduos saudáveis. Se os testes forem bem-sucedidos, poderão ter autorização para testar em portadores de uma determinada doença”, explicou Ferreira
Inicialmente, porém, o foco da Aldea – que não tem participação brasileira – não serão os pacientes com insuficiência cardíaca e sim portadores de uma mutação no gene da ALDH2, que afeta 600 milhões de pessoas no mundo (45% da população oriental, sendo a mutação mais frequente no mundo) e as torna mais suscetíveis aos efeitos nocivos do álcool – substância que ao ser metabolizada libera grande quantidade de aldeídos.
“Essa mutação reduz a atividade da ALDH2 em até 95%. Pessoas com essa mutação têm mais chance de desenvolver doenças associadas ao álcool, como câncer de esôfago. E, mesmo sem beber, têm maior risco de sofrer de doenças cardiovasculares e neuronais pela dificuldade de se livrar dos aldeídos”. A Alda-1 é capaz de aumentar a atividade da ALDH2 mutante em até 10 vezes, apresentando um grande potencial terapêutico para os indivíduos portadores da mutação”, contou Ferreira.
A Aldea deve testar ainda a eficiência da molécula Alda-1 na prevenção de problemas decorrentes do consumo excessivo de álcool e no tratamento emergencial de pacientes em coma alcoólico. Segundo Ferreira, a linha de doenças cardíacas também é uma das que a startup pretende investir no futuro.
“Os pesquisadores de Stanford estão fazendo uma série de estudos para otimizar a molécula, modificando sua estrutura a fim de torná-la mais solúvel, com efeito mais prolongado e com menor toxicidade. Nós temos um contrato para testar essas variantes nos modelos de nosso laboratório”, disse Ferreira.
Agência FAPESP