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Uma vacina contra a febre reumática – doença inflamatória que acomete pessoas geneticamente suscetíveis após uma infecção bacteriana – deve começar a ser testada em seres humanos ainda este ano por pesquisadores do Instituto do Coração (InCor), da Universidade de São Paulo (USP). Experimentos feitos em roedores e em pequenos porcos sugerem que o imunizante é seguro e tem capacidade de induzir uma resposta imunológica específica contra a bactéria Streptococcus pyogenes.
Na maioria dos infectados, esse patógeno causa apenas dor de garganta. Em crianças predispostas, porém, o contato com a S. pyogenes pode desencadear um quadro autoimune. Na tentativa de se defender da bactéria, o sistema imunológico começa a atacar tecidos do próprio organismo – o coração é o principal alvo.

“Isso acontece porque partes da bactéria têm sequências de aminoácidos e a conformação de algumas proteínas muito parecidas com as existentes nas válvulas cardíacas”, explicou Luiza Guilherme, pesquisadora do InCor e coordenadora da pesquisa.

A doença também pode causar um quadro de dor nas articulações conhecido como poliartrite, que costuma melhorar com o tempo. Mas as lesões nas válvulas cardíacas são progressivas e permanentes – levando, cedo ou tarde, à necessidade de cirurgia corretiva.

“Quando o paciente é operado pela primeira vez ainda criança, a chance de precisar passar por várias cirurgias ao longo da vida é grande. Por isso a febre reumática é uma das doenças com tratamento mais caro no Brasil e no mundo”, afirmou Guilherme.

Estima-se que apenas 3% ou 4% das pessoas sejam suscetíveis a desenvolver doença autoimune após a infecção pela S. pyogenes. Ainda assim, o custo do tratamento da febre reumática para o Sistema Único de Saúde (SUS) fica atrás apenas do gasto com a Aids. Em 2007, segundo a pesquisadora, foram US$ 30 milhões para custear o tratamento clínico da doença e outros US$ 60 milhões para cirurgias cardíacas. O Ministério da Saúde não tem levantamento mais recente.

No InCor, onde são atendidos cerca de 600 pacientes com a doença reumática cardíaca por mês, 2 mil pessoas estão na fila para fazer a cirurgia valvular. Quase 40% dos operados são crianças.

Fragmento mínimo

A busca por um antígeno da bactéria capaz de induzir uma resposta imunológica protetora começou no ano 2000, com apoio do Programa de Apoio à Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (PITE), da FAPESP. Atualmente, a pesquisa é realizada no âmbito do Instituto de Investigação em Imunologia, um dos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCTs) instalados em São Paulo e apoiados pela FAPESP e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

“O primeiro passo foi definir o epitopo, ou seja, o fragmento mínimo da bactéria capaz de induzir uma resposta imunológica. Para isso, analisamos o soro de indivíduos normais, que tiveram contato com a bactéria e não desenvolveram a doença autoimune. A ideia era descobrir com qual parte da bactéria o organismo reagia”, contou Guilherme.

Dentro da chamada proteína M – molécula secretada pela parede externa da bactéria – os cientistas identificaram um grupo de 55 resíduos de aminoácidos capazes de serem reconhecidos pelos anticorpos e linfócitos do sistema imunológico humano.

“A proteína M tem uma região ‘A’ que está em constante mutação. Os resíduos de aminoácidos vão se alterando e dando origem a novas cepas de bactérias. Tem também uma região ‘B”, que é a que desencadeia o quadro autoimune. Mas há ainda as regiões ‘C’ e ‘D’, que são iguais em praticamente todas as cepas e não causam a doença. Nós identificamos a sequência de aminoácidos da vacina na região ‘C’”, contou a pesquisadora.

Uma versão sintética da sequência de aminoácidos foi produzida em laboratório e injetada em diversos modelos de estudo com camundongos. Um dos experimentos foi feito com uma linhagem transgênica de roedores que expressavam moléculas humanas do sistema HLA de classe 2 (antígeno leucocitário humano, na sigla em inglês) – diretamente envolvidas com a identificação de antígenos e desenvolvimento da resposta imunológica.

“A ideia era mimetizar a suscetibilidade genética ao quadro autoimune presente em certos pacientes humanos e avaliar a segurança da vacina. Acompanhamos os animais durante um ano e observamos que o imunizante não induziu nenhum tipo de lesão ou alteração nos órgãos”, contou Guilherme.

Para testar a capacidade de proteção da vacina, os cientistas submeteram os camundongos a um desafio imunológico. “Os animais foram infectados com quantidades enormes da bactéria, suficientes para induzir um abscesso peritoneal. O grupo imunizado apresentou sobrevida de 80% após um mês, os demais morreram no dia seguinte”, contou a pesquisadora.

Testes posteriores com os roedores indicaram que a vacina induziu a produção de grandes quantidades de anticorpos específicos contra a S. pyogenes. Os resultados foram divulgados em um artigo publicado na revista Vaccine.

Também foram realizados experimentos em pequenos porcos de aproximadamente 25 kg – peso semelhante ao de uma criança. Os animais foram acompanhados por um ano, apresentaram altos títulos de anticorpos e nenhuma reação deletéria.

“Com esses resultados em mãos, estamos prontos para iniciar estudos de fase 1 em humanos. Apenas aguardamos a liberação do financiamento pré-aprovado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES)”, contou Guilherme.

No primeiro momento, serão vacinados apenas indivíduos adultos saudáveis (voluntários). O objetivo é verificar se o imunizante consegue induzir a produção de anticorpos específicos. “Os voluntários serão acompanhados por cardiologistas, imunologistas e infectologistas e, paralelamente, faremos o controle de autoimunidade. Caso os resultados sejam promissores, poderemos partir para testes em crianças e com um maior número de voluntários”, afirmou a pesquisadora.

O artigo HLA class II transgenic mice develop a safe and long lasting immune response against StreptInCor, an anti-group A streptococcus vaccine candidate (doi: 10.1016/j.vaccine.2011.08.113) pode ser lido em www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0264410X11013909.

Agência FAPESP