Na época, o tempo entre a coleta da amostra na cena do crime e o término do relatório pelos especialistas não era menor que oito semanas. Hoje, em laboratório, já é possível realizar todo o processo em menos de uma hora. De lá para cá, também se tornou viável a realização do exame com amostras menores de DNA e em pior estado de conservação.
Um dos responsáveis pelos avanços nessa tecnologia é o americano John Marshall Butler, pesquisador do National Institute of Standards and Technology (NIST), dos Estados Unidos, que esteve em São Paulo na semana passada para um congresso. Na época em que o caso O.J. Simpson estava em evidência, o cientista ainda cursava o doutorado no laboratório do Federal Bureau of Investigation (FBI), em Washington.
Também nesse período estava sendo desenvolvida a tecnologia até hoje mais usada em exames de DNA no mundo inteiro, que consiste na análise de marcadores do tipo STR (Short Tandem Repeat, ou Regiões Repetitivas Polimórficas), únicos em cada indivíduo. Em sua tese, Butler desenvolveu um método para separar os fragmentos de DNA para a análise por meio de eletroforese capilar (técnica de separação de moléculas carregadas por meio de um campo elétrico). Isso permitiu automatizar algumas etapas do teste STR, tornando-o mais simples, preciso e possível de ser feito em oito horas.
Seu mais influente trabalho, no entanto, foi publicado em 2003 – época em que integrava o grupo de cientistas que orientou a identificação das vítimas do atentado terrorista ao World Trade Center, ocorrido em 11 de setembro de 2001.
No artigo “The development of reduced size STR amplicons as tools for analysis of degraded DNA”, publicado no Journal of Forensic Sciences, Butler e colaboradores descreveram um método conhecido como mini-STR, que tornou possível realizar o exame com amostras menores e mais fragmentadas de DNA.
“Havia muitos corpos carbonizados ou muito danificados pelo impacto do desabamento das torres. Precisávamos de métodos mais sensíveis”, disse em entrevista à Agência FAPESP concedida durante o 4º Congresso Brasileiro de Genética Forense, do qual foi um dos principais destaques.
O evento, realizado com apoio da FAPESP, reuniu no Memorial da América Latina, entre os dias 7 e 10 de maio, os mais renomados nomes da área.
Em sua apresentação, Butler – autor de quatro livros sobre o tema – falou sobre “O estado da arte do DNA forense” e revelou o que espera para o futuro: obter de uma amostra de DNA informações como cor de olho, cabelo, pele ou formato da face, para ajudar ainda mais a polícia na identificação de criminosos.
Leia a seguir trechos da entrevista.
Agência FAPESP – Quando iniciou sua graduação em Química já tinha a intenção de trabalhar com ciência forense?
John Marshall Butler – Sim. Eu tinha muito interesse na área de Direito, mas me aconselharam a não seguir esse caminho porque já havia muitos advogados nos Estados Unidos. Como eu também gostava muito de ciência, procurei uma área em que pudesse unir as duas coisas.
Agência FAPESP – Nessa época o exame de DNA ainda estava começando. Como foi a evolução desde então e qual foi sua contribuição?
Butler – O exame surgiu em meados da década de 1980 na Inglaterra. A tecnologia original desenvolvida para testes forenses era a Restriction fragment length polymorphism (RFLP), que basicamente analisa as diferenças no comprimento dos fragmentos de DNA. Foi o método usado no caso O. J. Simpson. O resultado levava cerca de oito semanas para ficar pronto. Além disso, essa técnica requer uma amostra grande e intacta de DNA. Era necessário ter uma mancha de sangue de vários centímetros e ela não poderia ter sido tocada. Se alguém colocasse o dedo ou pisasse sobre a mancha, a evidência estava arruinada. Mas, nessa época, estava começando a ser desenvolvida a tecnologia mais usada até hoje para DNA forense, que consiste na análise de marcadores do tipo STR. Esse método permite fazer análises com amostras menores de DNA. Quando o material deixado na cena do crime tem poucas células, podemos copiar regiões específicas do DNA usando um método chamado PCR (reação em cadeia da polimerase, na sigla em inglês). Copiamos a região chamada STR – uma pequena porção do DNA repetida no meio da molécula – que pode ter vários comprimentos. Quanto maior o número de repetições, maior o tamanho da molécula e cada indivíduo tem um padrão único. Sabendo o número de repetições, podemos colocar essa informação em um banco de dados e comparar com dados de suspeitos. Eu era aluno da Universidade de Virginia nessa época e cursava meu pós-doutorado no laboratório do FBI. Desenvolvi um método de separação dos fragmentos de DNA por meio de eletroforese capilar. Isso reduziu o tempo de realização do exame STR para cerca de oito horas.
Agência FAPESP – Seu trabalho mais famoso, no entanto, está relacionado ao método mini-STR, de 2003. Como funciona?
Butler – O exame STR original tem como alvo uma grande seção do DNA, embora a parte repetida fique numa pequena área no meio da molécula. O mini-STR basicamente propõe usar como alvo uma seção menor do DNA, com o objetivo de capturar apenas a variação que ocorre na região das repetições. Ou seja, você consegue a mesma informação com um pedaço menor de DNA; por isso, o método funciona melhor nos casos em que a amostra está danificada, em que foi exposta à água, ao calor ou às condições ambientais por longos períodos. Esse tipo de situação faz com que a molécula de DNA vá se quebrando em pedaços cada vez menores. Nós publicamos os primeiros trabalhos sobre o tema na época da identificação das vítimas do atentado ao World Trade Center. Precisávamos de métodos mais sensíveis porque havia muitos corpos carbonizados ou muito danificados pelo impacto do desabamento das torres. Depois de algum tempo, algumas empresas transformaram essa tecnologia em kits comerciais.
Agência FAPESP – O senhor ajudou no trabalho de identificação das vítimas de 11 de setembro de 2001?
Butler – Pessoalmente não identifiquei ninguém, mas eu integrava um comitê de 25 cientistas que se reuniu ao longo de sete anos e tinha como missão orientar o trabalho de identificação desenvolvido em um laboratório de Nova York.
Agência FAPESP – Quais foram os avanços desde então?
Butler – Desenvolvemos métodos para acelerar ainda mais todo o processo do exame, desde a coleta da amostra de DNA até a interpretação dos resultados. O tempo para fazer as cópias de DNA por PCR foi encurtado dramaticamente, usando enzimas diferentes e ciclos curtos de aquecimento e resfriamento do material. No laboratório, já conseguimos fazer tudo em menos de uma hora.
Agência FAPESP – Mas isso, por enquanto, só é possível em nível de pesquisa?
Butler – Sim. Para que se torne rotina é preciso que as empresas criem os kits comerciais. Parte do desafio da ciência forense é que leva um tempo para implementar as novidades – geralmente são cinco anos entre a criação da tecnologia e ela estar pronta para ser usada na corte. A tecnologia STR, por exemplo, tornou-se rotina por volta do ano 2000.
Agência FAPESP – Por que é importante acelerar o processo ainda mais, em sua opinião?
Butler – Isso não só permite fazer a comparação da evidência na cena do crime com o suspeito mais rapidamente como também amplia as possibilidades de uso do exame. Permitirá, por exemplo, identificar pessoas suspeitas em aeroportos. Poderá também ser usada nas embaixadas, como um dos mecanismos de análise na hora de conceder um visto de entrada para um determinado país. Assim como o advento do smartphone revolucionou a forma como a internet é usada, as novas tecnologias para exame de DNA vão mudar a forma como ele é usado. Há vantagens e desvantagens. No caso do smartphone, tornou-se possível responder a um e-mail durante uma reunião. Não é preciso mais voltar ao escritório para fazer isso. Mas hoje, possivelmente, as pessoas estão mais distraídas, prestam menos atenção às reuniões. Tecnologias mais rápidas e mais poderosas para exame de DNA poderão impactar a privacidade das pessoas. Mas o Facebook também causou um impacto na privacidade das pessoas. Cabe ao indivíduo usar a tecnologia de forma responsável.
Agência FAPESP – Como funciona o teste do cromossomo Y, conhecido como YSTR, e quando ele pode ser útil?
Butler – Principalmente em crimes sexuais, quando há uma mistura do DNA da vítima, se ela for mulher, e do agressor, geralmente um homem. O resultado é direcionado apenas para a porção masculina de DNA encontrada na amostra. Os marcadores para o exame do cromossomo Y foram desenvolvidos na mesma época que o teste STR padrão, mas só foram de fato adotados quando o primeiro kit comercial ficou disponível, por volta de 2003. Muitos lugares ainda não têm esse tipo de teste. É uma abordagem diferente para obter informações da amostra de DNA. Em alguns casos também pode ser usado na busca de pessoas desaparecidas, se a vítima for homem.
Agência FAPESP – O Brasil acaba de regulamentar uma lei que torna obrigatória a coleta de DNA de pessoas condenadas por crimes hediondos para compor uma base de dados nacionais. Também permite, em alguns casos, a coleta de amostras de suspeitos e a criação de um banco de material genético de pessoas desaparecidas. Como isso funciona nos Estados Unidos?
Butler – Todos os 50 estados americanos exigem a coleta de DNA após a condenação criminal e existe um banco de dados nacional. Em 2006 a legislação federal permitiu a coleta de amostras de suspeitos, pessoas presas mas que ainda não foram julgadas. Mas cada estado tem que criar sua própria lei. Atualmente, isso é feito em 28 estados e a Corte Suprema está avaliando o tema. Já o banco de dados de pessoas desaparecidas, que contém tanto material de familiares como de ossadas e corpos de desconhecidos encontrados, existe há cerca de dez anos. Com certeza, estamos em estágios diferentes, mas com a aprovação da lei no Brasil os bancos de dados poderão crescer rapidamente e ajudar a solucionar muitos casos.
Agência FAPESP – O que o senhor espera para o futuro do DNA forense?
Butler – Conseguir mais informações da amostra. Descobrir a forma da face ou a cor dos olhos e dos cabelos. Isso pode ser útil em certas ocasiões e, em outras, não. Se você descobre que o indivíduo tem olhos castanhos e cabelo castanho, por exemplo, isso é muito comum. Mas se você descobre que o criminoso é ruivo ou tem uma cor de olho muito diferente, pode ajudar a polícia na identificação do responsável pelo crime. As técnicas para descobrir a cor da pele ainda não estão perfeitas, mas estão melhorando.
Agência FAPESP