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A anestesia bucal indolor e sem agulha é um desejo antigo dos profissionais de odontologia e considerada por muitos o “Santo Graal” da profissão. Afinal, há quase cem anos os anestésicos são aplicados na mucosa da boca da mesma maneira, por meio de dolorosas injeções. Será que existem alternativas menos invasivas? Pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) acreditam que sim.
A equipe coordenada pela bioquímica Eneida de Paula, do Instituto de Biologia, desenvolveu o Projeto Temático “Novas formulações de anestésicos locais de liberação sustentada: do desenvolvimento ao teste clínico odontológico”, apoiado pela FAPESP, que teve como um dos objetivos a criação de um gel ou creme anestésico a ser empregado pelos dentistas.

De Paula explica q ue a proposta não foi produzir novas moléculas anestésicas, pois isso exigiria pelo menos dez anos de desenvolvimento e testes clínicos. O propósito foi ampliar a eficácia dos sais anestésicos disponíveis no mercado ao encapsulá-los dentro de carreadores ou nanopartículas capazes de levar os princípios ativos ao lugar desejado e liberá-los de forma controlada.

A associação entre carreadores e anestésicos poderia, teoricamente, aumentar o tempo de anestesia, exigir uma concentração menor de princípio ativo e diminuir o risco de o composto entrar na corrente sanguínea e se espalhar pelo corpo de forma nociva.

A pesquisa teve início em 2007 com a escolha do carreador ideal para cada anestésico. “Ele não poderia causar reações adversas no organismo, teria de ser quimicamente estável e precisaria manter o anestésico no local aplicado pelo maior tempo possível”, disse De Paula à Agência FAPESP.

Os lipossomas, partículas feitas de lipídios e semelhantes a membranas biológicas, foram os primeiros carreadores testados pelo grupo. Segundo De Paula, os lipossomas são capazes de levar os anestésicos sem gerar reações adversas e já são empregados pela indústria farmacêutica em antivirais, antifúngicos e no desenvolvimento de vacinas e medicamentos anticâncer.

A pesquisadora conta que os lipossomas oferecem um ambiente molecular semelhante ao do local de ação do anestésico local. “Além disso, suas propriedades químicas atraem esses medicamentos, que ficam retidos em suas membranas, evitando que sejam rapidamente absorvidos para além do local de ação”, disse.

Testes em animais e humanos mostraram que o uso dos lipossomas como carreadores prolongou o tempo de ação dos anestésicos mepivacaína e prilocaína em três a quatro vezes, comparados aos medicamentos comerciais que agem por duas a quatro horas. Tal eficácia, entretanto, ainda dependia do uso de seringas na aplicação do medicamento.

É que, para eliminar a dor, o sal anestésico precisa ultrapassar a mucosa e o osso compacto da boca para bloquear a condução do impulso nervoso que transporta as informações de sensibilidade da região dental ao cérebro.

“Imaginávamos que o lipossoma passaria com mais facilidade pelo osso para, assim, chegar ao nervo a ser anestesiado. Só que isso não ocorreu”, explicam Francisco Carlos Groppo e Maria Cristina Volpato, pesquisadores da Faculdade de Odontologia de Piracicaba, da Unicamp.

Os cientistas envolvidos no projeto temático buscavam ampliar a ação anestésica para muitas horas, seja com ou sem o uso de seringas. Para isso, decidiram estudar carreadores alternativos.

De Paula iniciou os testes com ciclodextrinas, moléculas produzidas a partir da quebra do amido. “Umas das principais vantagens das ciclodextrinas é que elas aumentam a solubilidade aquosa dos anestésicos, fazendo com que maior quantidade do composto chegue ao nervo que precisa ser anestesiado. Grandes porções de anestésicos são necessárias para banhar a região do nervo e impedir a propagação do impulso doloroso”, explicou a pesquisadora responsável pelo Temático.

Testes em animais mostraram que anestésicos como a bupivacaína e a ropivacaína, complexados com hidroxipropil-beta-ciclodextrina, aumentaram o tempo de duração e a intensidade da anestesia para além de 6 horas após uma aplicação única.

Estudos também apontaram que anestésicos associados a carreadores necessitam de quantidades menores de princípio ativo para cumprir a sua função. Em animais, a mepivacaína a 2% encapsulada em lipossomas exerceu uma atividade anestésica semelhante à mepivacaína a 3% sem carreador.

A pesquisa liderada por De Paula gerou ainda uma patente que despertou o interesse de algumas indústrias farmacêuticas. Os pesquisadores aperfeiçoaram a composição de um gel que, em alguns casos, é aplicado sobre a mucosa da boca para diminuir a dor da injeção anestésica.

Lipossomas foram associados aos anestésicos de uso local benzocaína e mepivacaína. No caso da benzocaína, foi possível manter a eficácia do gel com a concentração do princípio ativo diminuída pela metade, de 20% para 10%.

“O gel preparado também apresentou propriedades reológicas interessantes que possibilitaram ao medicamento permanecer no local aplicado por mais tempo que o produto disponível no mercado, sem derreter e perder a atividade”, disse De Paula. Empresas interessadas em comercializar essa tecnologia podem entrar em contato com a Inova Unicamp.

A pesquisadora destaca que o Temático também teve um papel relevante na formação de mão de obra qualificada nessa área de pesquisa. Ao longo do projeto, foram publicados 46 artigos científicos em revistas internacionais indexadas, resultantes de 19 teses de doutorado e 22 dissertações de mestrado.

Além disso, três profissionais formados no âmbito do projeto se tornaram líderes de novos grupos de pesquisa, atuando no desenvolvimento de sistemas de transporte de medicamentos baseados em polímeros, para uso tópico ou na determinação farmacocinética da liberação sustentada, na Universidade Estadual Paulista (Unesp), na Universidade Federal do ABC e na Universidade São Francisco.

Os avanços obtidos no projeto levam os pesquisadores da Unicamp a acreditar que é possível desenvolver uma anestesia bucal sem uso de injeção. “Entretanto, é necessário avançar a pesquisa com novos carreadores, como os polímeros, aprimorar a tecnologia de desenvolvimento dos lipossomas e reduzir o custo de produção desses compostos”, disse De Paula.

Agência FAPESP