Um estudo publicado na revista Science, realizado por um grupo internacional de pesquisadores, do qual participaram dois brasileiros, revelou que as menores porções de matéria viva – as células – também fazem sacrifícios para assegurar a continuidade de suas futuras gerações.
Os pesquisadores constataram que durante o processo de divisão celular (mitose) – pelo qual uma célula “mãe” se divide para dar origem a uma célula “filha” – a célula “materna” fornece muito mais mitocôndrias (estruturas internas essenciais para a sobrevivência de qualquer vida celular) para sua “cria” do que se esperaria pela razão entre os volumes delas – a célula filha é menor do que a célula mãe.
A descoberta sugere a hipótese de que, tal como na natureza, as células mães se sacrificariam para aumentar as chances de sobrevivência de suas filhas.
“Essa constatação é inédita e contraria a intuição de que as mitocôndrias são divididas de forma proporcional à densidade [volume] das células mães e das células filhas. Elas quebram essa regra”, disse Luciano da Fontoura Costa, professor do Departamento de Física e Informática do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP), campus de São Carlos, e um dos autores do estudo.
Costa é um dos pesquisadores principais de um Projeto Temático, realizado com apoio da FAPESP, coordenado pelo professor Roberto Marcondes Cesar Junior, do Departamento de Ciência da Computação do Instituto de Matemática e Estatística (IME) da USP, e realiza um projeto de pesquisa no âmbito do acordo da FAPESP com a Universidade de York, do Reino Unido.
O pesquisador foi orientador da iniciação científica, do doutorado e do pós-doutorado – todos realizados com Bolsa da FAPESP – de Matheus Palhares Viana, o segundo pesquisador brasileiro participante do estudo.
Viana atualmente faz pós-doutorado na Universidade da Califórnia em Irvine no grupo da pesquisadora Susanne Rafelski – a primeira autora do trabalho, com o professor Wallace Marshall, da Universidade da Califórnia em São Francisco (UCSF), nos Estados Unidos. O estudo também contou com a participação de pesquisadores da Universidade de Pequim, na China.
Para estudar o processo de transferência de mitocôndrias entre as células, os pesquisadores usaram leveduras Saccharomyces cerevisiae – comumente utilizadas na produção de pão e de cerveja.
Por meio de sofisticadas técnicas de microscopia, a equipe internacional – liderada por Marshall e Rafelski – captou imagens das células das leveduras em um microscópio confocal (fluorescência) e promoveu um processo de fatiamento óptico das mitocôndrias presentes nelas, nas quais as estruturas são fragmentadas em diversos pedaços, como peças de um quebra-cabeça.
Por meio de métodos de computação específicos para o processamento de imagens – desenvolvidos inicialmente durante outro Projeto Temático, realizado com apoio da FAPESP, do qual Costa também participou –, o pesquisador e Viana juntaram as “fatias” das mitocôndrias, fizeram a reconstrução tridimensional (em 3D) das estruturas e a representaram na forma de redes (grafos). Dessa forma, conseguiram reproduzir em detalhes e medir o tamanho físico das redes mitocondriais – que tendem a diminuir continuamente ao longo das gerações sucessivas das células.
Os pesquisadores observaram que, no caso das células de levedura, no entanto, o tamanho da rede mitocondrial aumentava com o crescimento das células, e que essa relação de escala ocorria, principalmente, pela raiz.
“Se as mitocôndrias fossem divididas aleatoriamente e a densidade das células fosse mantida constante, esperava-se encontrar menos mitocôndrias nas células filhas do que nas células mães. O que se descobriu nesse trabalho é que a célula mãe dá mais mitocôndrias do que se esperava para a célula filha”, disse Costa à Agência FAPESP.
De acordo com os pesquisadores, em vez de as leveduras “mães” fornecerem quantidade suficiente de mitocôndrias para seus descendentes, de forma a garantir sua própria sobrevivência, elas transferiam muito mais organelas do que o necessário, mesmo à custa de suas vidas. A maioria delas começou a morrer passadas dez gerações.
Já formas mutantes de leveduras, muito mais “avarentas” para fornecer suas mitocôndrias às futuras gerações, viveram por muito mais tempo.
Abordagem complementar
Segundo Costa, a descoberta desses mecanismos de divisão poderá ser estendida para outros organismos e tecidos. As células-tronco humanas e algumas células cancerosas, por exemplo, muitas vezes se dividem em duas células que se parecem e se comportam de forma muito diferente.
Em função disso, na opinião do pesquisador, estudos de biologia de sistemas como o que realizaram – que usam abordagens de ciências exatas, como métodos quantitativos de matemática, física e computação, e vão além da análise molecular – complementam a pesquisa em genética.
De acordo com Costa, as pesquisas sobre o genoma – hoje feitas em maior escala do que os estudos de biologia molecular – são insuficientes para entender um organismo como um todo porque diversos genes não são expressos, por exemplo.
“Os genes, em princípio, indicam como construir uma proteína, por exemplo. Mas o fato de se ter um gene não significa dizer que o organismo vai ter esta determinada proteína expressa”, disse.
“Existe todo um controle na maquinaria celular que determina se essa proteína será expressa ou não. E esse controle, inclusive, depende da geometria do embrião e se já foram formados certos tecidos e estruturas anatômicas que são usados como sinalização para expressão de genes e servem como andaimes para construir o resto de um organismo”, disse Costa.
O artigo Mitochondrial network size scalling in building yeast (doi:10.1126/science.1225720), de Luciano da Fontoura Costa e outros, pode ser lido em www.sciencemag.org/content/338/6108/822.full.
Agência FAPESP