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steven-hollandEnquanto nos Estados Unidos há 250 mil pessoas diagnosticadas com imunodeficiências primárias, no Brasil não chegam a 2 mil os casos confirmados dessa disfunção genética relacionada à deficiência no combate às infecções, que expõe o paciente a uma série de doenças. Entretanto, com base na incidência constatada na população norte-americana, estima-se que possa haver de 120 mil a 150 mil pessoas com o problema no Brasil. A desproporção entre a estimativa e os casos registrados não é casual: o diagnóstico é o principal desafio da ciência em relação às imunodeficiências primárias, de acordo com o imunologista Steven Holland, chefe do Laboratório de Doenças Infecciosas Clínicas do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas – dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH, na sigla em inglês) –, sediado em Bethesda, nos Estados Unidos.
Os médicos, segundo Holland, têm dificuldades para interpretar os sintomas da imunodeficiência primária, que se confundem com infecções passageiras e menos graves. Outro desafio crítico é o tratamento desse problema relacionado a pelo menos 160 defeitos genéticos diferentes.

Em entrevista à Agência FAPESP, Holland explicou por que a importância e a incidência da imunodeficiência primária vêm aumentando em muitos países, assim como o esforço dos cientistas para compreendê-la – inclusive no Brasil.

Holland está no Brasil para participar da São Paulo Advanced School on Primary Immunodeficiencies: Unraveling Human Immuno-Physiology, promovida pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) em parceria com o Instituto Gulbenkian de Ciência, de Portugal.

Organizado no âmbito da Escola São Paulo de Ciência Avançada (ESPCA) – modalidade de apoio lançada pela FAPESP em 2009 –, o evento reúne 77 estudantes brasileiros e estrangeiros envolvidos com pesquisas relacionadas às imunodeficiências primárias. O foco dos estudos consiste em ver as imunodeficiências primárias como um experimento da natureza, que possibilita o avanço do conhecimento sobre a fisiologia do sistema imune humano.

Formado na Escola de Medicina da Universidade Johns Hopkins, em 1983, Holland começou suas pesquisas no NIH em 1989, no Laboratório de Microbiologia Molecular, trabalhando com a regulação transcricional do vírus HIV.

No início da década de 1990, seus estudos passaram a tratar de imunologia associada a infecções. A partir de então, tornou-se um dos principais especialistas na patogênese da doença granulomatosa crônica, uma imunodeficiência primária que afeta os fagócitos e acarreta, entre outras coisas, a predisposição a doenças micobacterianas.

Agência FAPESP – Quais são os principais desafios da ciência, atualmente, em relação à imunodeficiência primária e às doenças relacionadas a ela?
Steven Holland – Há vários desafios críticos relacionados à imunodeficiência primária. Um deles é o diagnóstico. As crianças estão sujeitas a infecções relacionadas a uma grande variedade de organismos – e é muito comum que elas tenham infecções. O que é complicado é saber se a infecção reflete uma imunodeficiência – o que acarreta a necessidade de uma avaliação mais aprofundada. O ideal seria fazer um diagnóstico precoce.

Agência FAPESP – O que torna o diagnóstico tão difícil?
Holland – Qualquer criança pode ter um problema – uma garganta inflamada, uma infecção no ouvido, ou uma infecção na pele, por exemplo – que pode ser perfeitamente normal, mas pode também ser parte de algo muito mais grave. São muitas variáveis e é difícil fazer a distinção entre esse tipo de disfunção e uma infecção normal. Há testes disponíveis para fazer essa distinção, mas alguns deles são muito difíceis de aplicar, outros são muito caros. Mesmo haver um grande número de testes é um fator complicador: muitas vezes não sabemos qual criança precisa de qual teste. Tudo isso é muito difícil de administrar, até mesmo para os especialistas.

Agência FAPESP – Testes genéticos poderiam proporcionar diagnósticos mais eficientes?
Holland – Sim, mas isso também é complicado. Existem 160 defeitos de genes que acarretam imunodeficiências primárias. E, atualmente, sequenciar 160 genes seria bem caro. Dentro de cinco anos, no entanto, certamente não deverá ser tão difícil. De todo modo, o primeiro desafio atualmente é o diagnóstico. O segundo desafio é o tratamento.

Agência FAPESP – Quais são as dificuldades do tratamento?
Holland – Há dois grupos diferentes de dificuldades. O primeiro consiste em definir o tratamento certo – com antibióticos, antivirais ou antifúngicos, por exemplo – a ser utilizado para prevenir a infecção. Esses remédios muitas vezes são muito caros, ou difíceis de tolerar. Fazer as pessoas tomarem um medicamento todos os dias também não é uma tarefa fácil.

Agência FAPESP – E a segunda dificuldade relacionada ao tratamento?
Holland – A segunda questão está se tornando cada vez mais crítica, no Brasil, assim como em todos os países industrializados. Trata-se de saber quem deveria receber transplante de medula óssea. E, em relação aos que se submetem ao transplante de medula óssea: como devem fazê-lo e onde devem fazê-lo? No hospital local ou no hospital central de referência? Além disso, há outras questões complicadas nesses casos, relacionadas a recursos financeiros, à família, a viagens, ao acompanhamento posterior do doente. Acredito que essas sejam as duas questões críticas.

Agência FAPESP – Em que os pesquisadores brasileiros poderiam contribuir nesse contexto?
Holland – O Brasil é um país de recursos extraordinários, com população muito grande e uma comunidade acadêmica médica realmente muito bem treinada. Sabemos que as imunodeficiências primárias são experimentos da natureza. Como o Brasil tem essa grande população – na qual existem centenas de milhares de casos de imunodeficiência para serem identificados – e tem modernos centros de referência acadêmica em cidades importantes, acredito que a contribuição do país pode ser valiosíssima.

Agência FAPESP – Em todas as áreas de pesquisa?
Holland – Sim, por ter recursos humanos qualificados e uma amostra muito grande dessas doenças. Acho que os médicos brasileiros vão persistir nas pesquisas para que o país se torne capaz de identificar e tratar essas doenças. Quando o Brasil fizer isso, os cientistas brasileiros publicarão na literatura médica artigos que mostrarão de fato o que está ocorrendo no Brasil.

Agência FAPESP – Por que há interesse da comunidade científica internacional em saber o que se passa no Brasil?
Holland – Um dos aspectos que tornam tão interessantes as infecções, em geral, e as imunodeficiências primárias, em particular, é que elas são muito regionais. As pessoas pegam infecções diferentes se estiverem em Bethesda ou em São Paulo. Apenas pessoas do Brasil nos ensinam o que são as infecções brasileiras. Os médicos vão saber o que esperar. Eles não vão esperar as infecções que eu vejo, necessariamente, porque eu vejo as que existem no meu ambiente. Vocês estão expostos a outras coisas e a riscos diferentes. E isso precisa ser definido por cada país, em cada lugar.

Agência FAPESP – A pesquisa nessa área é relativamente recente. Essas doenças parecem chamar cada vez mais a atenção. As taxas de imunodeficiência primária estão se elevando, ou é apenas o diagnóstico que está mudando?
Holland – Acho que as duas coisas estão mudando simultaneamente. A nossa capacidade de diagnóstico está se aperfeiçoando e isso sempre será um fator importante. Mas há algo ainda mais importante: o nosso ambiente está mudando. Está se transformando de maneiras que o tornam mais limpo – temos refrigeração, leite pasteurizado, água limpa, temos redes de esgotos, coleta de lixo e assim por diante. O ambiente, portanto, é muito diferente do que se via há 100 anos. Ao mesmo tempo, estamos mudando o uso de antibióticos. Com isso, infecções que podiam ser fatais em crianças de 1 ano de idade agora são tratadas como se não fossem nada. Essas crianças, quando têm imunodeficiência primária, voltam a apresentar problemas diferentes aos 5, aos 10, ou aos 20 anos. Aí, de repente, nós olhamos para trás e percebemos que o problema na infância não era um problema comum.

Agência FAPESP – Então, com a mudança de ambiente essas crianças sobrevivem mais tempo com as imunodeficiências primárias?
Holland – Sim. Também estamos mudando os nossos tratamentos e, com isso, vemos o mesmo em muitos países: há cada vez mais crianças com esses problemas, sobrevivendo mais tempo e sendo diagnosticadas mais tarde. Há doenças comuns em determinados países – mesmo em partes do Brasil –, como a malária e a tuberculose, cuja frequência está declinando. Mas, quando observamos as doenças de populações de países industrializados, vemos cada vez mais gente sendo diagnosticada mais tarde na vida, porque elas estão sobrevivendo na infância.

Agência FAPESP – Como variam as possibilidades de sobrevivência em relação à idade? Isto é: se o paciente conseguir alcançar determinada idade ele está a salvo?
Holland – Acho que a resposta é em parte sim, em parte não. Como se sabe, tudo em nós se torna menos interessante à medida que envelhecemos. As crianças estão sempre lá fora brincando, na lama, na água, na poeira, no mato, sempre fazendo alguma coisa. Quando ficamos adultos, passamos nossas vidas em nossas casas e de lá vamos para nossos escritórios trabalhar. Não ficamos tão expostos a partes difíceis do ambiente como ficávamos quando éramos crianças. Então, por um lado, quando chegamos a uma certa idade, estamos menos expostos. Por outro lado, quando ficamos mais velhos, se há danos associados com nossas doenças – danos no fígado, no rim, ou no pulmão –, essas toxicidades e danos vão se acumulando com o tempo.

Agência FAPESP – A pessoa fica menos exposta e se torna menos resistente?
Holland – O problema é que, embora a nossa exposição ao ambiente possa diminuir, o acúmulo de danos pode continuar crescendo. Temos uma vida irregular. Nosso corpo acumula certos níveis de dano conforme envelhecemos e, na imunodeficiência, temos diferentes tipos de danos baseados na desregulação imune. Algumas coisas podem melhorar e outras piorar.

Agência FAPESP – Além dos diagnósticos e tratamentos, a investigação das rotas e mecanismos das doenças também é um desafio importante?
Holland – São desafios, mas estamos fazendo o melhor que podemos e temos aprendido muita coisa. O Brasil também está fazendo um trabalho excepcional nessa área. Estamos no caminho certo, embora ainda tenhamos muito trabalho pela frente.

Agência FAPESP